São Paulo, segunda-feira, 02 de agosto de 2004

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NELSON ASCHER

A autobiografia da vida

"Eu não tive relações sexuais com essa mulher, a senhorita Lewinski", disse Bill Clinton diante das câmeras em 26 de janeiro de 1998. Em 17 de agosto ele retornou à TV para confessar que realmente tivera uma relação imprópria com a moça. Se o presidente americano mudou de idéia, foi porque, no meio tempo, ela entregara à promotoria um vestido azul manchado de um fluido corporal comprometedor.
Em 4 de abril de 1962, James Hanratty foi executado na Inglaterra por ter, em agosto de 1961, assassinado Michael Gregsten e violentado sua namorada Valerie Storie. Malgrado ele também tentar matá-la , ela sobreviveu, mas ficou paralítica. A caminho da forca o condenado continuou protestando inocência e pediu à família que lhe limpasse o nome. Trinta e um anos mais tarde, esta, com o apoio da imprensa e de vários políticos, conseguiu reabrir o processo. No entanto o material encontrado na roupa de baixo de Valerie e num lenço que envolvera a arma do crime provou conclusivamente a culpa de Hanratty.
O que ambas as histórias têm em comum? Nenhuma delas teria se desenrolado dessa maneira não fosse pelo trabalho de um dos heróis culturais do século passado, o cientista inglês Francis Harry Compton Crick, que morreu, aos 88 anos, na última quarta-feira. Em parceria com um jovem colega americano, James Watson, ele descobriu, ou melhor, formulou um modelo convincente da estrutura molecular do Ácido Desoxirribonucleico (ADN), o que lhes valeu, juntamente com um terceiro cientista, Maurice Wilkins, o Nobel de Medicina de 1962.
Crick, que se formara em física antes da Segunda Guerra, resolveu após o final desta mudar de ramo movido por indagações acerca da natureza da vida. Simplificadamente, ele queria saber qual era a linha que separava o inorgânico do orgânico, onde, como e por que a matéria inanimada se tornava algo vivo. Identificando corretamente que o ADN, descoberto havia pouco, era a chave do enigma, ele encontrou em Watson alguém contagiado pela mesma curiosidade.
Após dois anos de investigação e pesquisa em Cambridge, a dupla apresentou, em 53, sua conclusão: uma estrutura que, conhecida desde então como "dupla hélice", permitia entender como ela se replicava. Nas palavras discretas dos dois: "Não escapou à nossa atenção que o emparelhamento específico que formulamos sugere um possível mecanismo pelo qual o material genético pode se copiar." Quando Watson regressou aos EUA, Crick, com outros colaboradores, elucidou em cerca de uma década os principais detalhes do processo em questão.
Seu trabalho é um dos raros avanços científicos que logo geraram tanto conseqüências práticas como até mesmo filosóficas. As práticas vão desde as políticas e jurídicas, como as descritas acima, à criação de alimentos transgênicos e ao diagnóstico e cura de inúmeras enfermidades. Além disso, a compreensão do ADN aplicada ao estudo comparativo das populações possibilitou mapear a longa pré-história da humanidade, seu surgimento no sudeste africano e migrações posteriores.
Quanto às filosóficas, Crick e Watson nos obrigaram a alterarmos o modo como nos víamos. Se os astrônomos renascentistas nos tiraram do centro do universo, e Darwin, afastando-nos dos anjos, devolveu-nos, uma espécie entre milhões, ao mundo natural, a explicação dos fundamentos químicos da vida demonstrou que todos nós, animais, plantas, microorganismos, não passamos de um caso particularmente complexo da matéria.
De certa forma, o que a dupla anglo-americana realizou lembra menos a imagem que se faz popularmente da ciência do que a atividade de um tipo distinto de profissionais.
Ao chegar à Índia para assumir o cargo de juiz, o poliglota e filólogo inglês Sir William Jones (1746-94) começou a tomar aulas de sânscrito e, aprendendo-o, constatou que essa língua se assemelhava, seja no vocabulário, seja na gramática e sintaxe, ao grego e ao latim. Daí nasceu a lingüística histórica e a teoria, pertinente apesar dos ecos bíblicos, de que todos os idiomas se originaram de um único falado há dezenas de milênios.
Graças à Pedra Rosetta, o francês Jean-François Champollion (1790-1832) decifrou, em 1822, a escrita hieroglífica egípcia, permitindo, assim, que uma civilização morta há milhares de anos voltasse a falar conosco. Outros estudiosos deram voz aos sumérios, hititas, maias etc. Durante a Segunda Guerra, os americanos que quebraram os códigos militares japoneses e os britânicos de Bletchley Park, que quebraram os alemães, asseguram aos aliados sucesso na batalha de Midway e no Dia D.
O ADN é igualmente um código: aquele através do qual cada ser vivo, cada organismo, comunica-se consigo mesmo e transmite as informações mais essenciais a seus descendentes. É nessa língua, a mais antiga que existe, tão estranha quanto elegante, que a vida fala sobre si. Crick e seus colegas a decifraram, dando-nos acesso consciente a seus quase infinitos documentos. Muito da ciência futura consistirá em lê-los e interpretá-los.
Tampouco é acidental, portanto, que, mudando novamente de ramo, um dos pais da biologia molecular se tornou um pioneiro da neurociência e dedicou o restante de seus dias a tentar compreender o que é a consciência. Ateu convicto, ele lhe procurava a base biológica e observou: "Que pode ser mais tolo do que fundamentar toda a visão da vida em idéias que, por mais plausíveis que tenham sido outrora, parecem agora totalmente equivocadas? E o que pode ser mais importante do que achar nosso verdadeiro lugar no universo removendo um a um esses vestígios infelizes de crenças ancestrais?".



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