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NELSON ASCHER
A autobiografia da vida
"Eu não tive relações sexuais com essa mulher, a
senhorita Lewinski", disse Bill
Clinton diante das câmeras em 26
de janeiro de 1998. Em 17 de agosto ele retornou à TV para confessar que realmente tivera uma relação imprópria com a moça. Se o
presidente americano mudou de
idéia, foi porque, no meio tempo,
ela entregara à promotoria um
vestido azul manchado de um
fluido corporal comprometedor.
Em 4 de abril de 1962, James
Hanratty foi executado na Inglaterra por ter, em agosto de 1961,
assassinado Michael Gregsten e
violentado sua namorada Valerie
Storie. Malgrado ele também tentar matá-la , ela sobreviveu, mas
ficou paralítica. A caminho da
forca o condenado continuou protestando inocência e pediu à família que lhe limpasse o nome.
Trinta e um anos mais tarde, esta,
com o apoio da imprensa e de vários políticos, conseguiu reabrir o
processo. No entanto o material
encontrado na roupa de baixo de
Valerie e num lenço que envolvera a arma do crime provou conclusivamente a culpa de Hanratty.
O que ambas as histórias têm
em comum? Nenhuma delas teria
se desenrolado dessa maneira não
fosse pelo trabalho de um dos heróis culturais do século passado, o
cientista inglês Francis Harry
Compton Crick, que morreu, aos
88 anos, na última quarta-feira.
Em parceria com um jovem colega americano, James Watson, ele
descobriu, ou melhor, formulou
um modelo convincente da estrutura molecular do Ácido Desoxirribonucleico (ADN), o que lhes
valeu, juntamente com um terceiro cientista, Maurice Wilkins, o
Nobel de Medicina de 1962.
Crick, que se formara em física
antes da Segunda Guerra, resolveu após o final desta mudar de
ramo movido por indagações
acerca da natureza da vida. Simplificadamente, ele queria saber
qual era a linha que separava o
inorgânico do orgânico, onde, como e por que a matéria inanimada se tornava algo vivo. Identificando corretamente que o ADN,
descoberto havia pouco, era a
chave do enigma, ele encontrou
em Watson alguém contagiado
pela mesma curiosidade.
Após dois anos de investigação e
pesquisa em Cambridge, a dupla
apresentou, em 53, sua conclusão:
uma estrutura que, conhecida
desde então como "dupla hélice",
permitia entender como ela se replicava. Nas palavras discretas
dos dois: "Não escapou à nossa
atenção que o emparelhamento
específico que formulamos sugere
um possível mecanismo pelo qual
o material genético pode se copiar." Quando Watson regressou
aos EUA, Crick, com outros colaboradores, elucidou em cerca de
uma década os principais detalhes do processo em questão.
Seu trabalho é um dos raros
avanços científicos que logo geraram tanto conseqüências práticas
como até mesmo filosóficas. As
práticas vão desde as políticas e
jurídicas, como as descritas acima, à criação de alimentos transgênicos e ao diagnóstico e cura de
inúmeras enfermidades. Além
disso, a compreensão do ADN
aplicada ao estudo comparativo
das populações possibilitou mapear a longa pré-história da humanidade, seu surgimento no sudeste africano e migrações posteriores.
Quanto às filosóficas, Crick e
Watson nos obrigaram a alterarmos o modo como nos víamos. Se
os astrônomos renascentistas nos
tiraram do centro do universo, e
Darwin, afastando-nos dos anjos,
devolveu-nos, uma espécie entre
milhões, ao mundo natural, a explicação dos fundamentos químicos da vida demonstrou que todos
nós, animais, plantas, microorganismos, não passamos de um caso
particularmente complexo da
matéria.
De certa forma, o que a dupla
anglo-americana realizou lembra
menos a imagem que se faz popularmente da ciência do que a atividade de um tipo distinto de profissionais.
Ao chegar à Índia para assumir
o cargo de juiz, o poliglota e filólogo inglês Sir William Jones (1746-94) começou a tomar aulas de
sânscrito e, aprendendo-o, constatou que essa língua se assemelhava, seja no vocabulário, seja na
gramática e sintaxe, ao grego e ao
latim. Daí nasceu a lingüística
histórica e a teoria, pertinente
apesar dos ecos bíblicos, de que todos os idiomas se originaram de
um único falado há dezenas de
milênios.
Graças à Pedra Rosetta, o francês Jean-François Champollion
(1790-1832) decifrou, em 1822, a
escrita hieroglífica egípcia, permitindo, assim, que uma civilização
morta há milhares de anos voltasse a falar conosco. Outros estudiosos deram voz aos sumérios, hititas, maias etc. Durante a Segunda
Guerra, os americanos que quebraram os códigos militares japoneses e os britânicos de Bletchley
Park, que quebraram os alemães,
asseguram aos aliados sucesso na
batalha de Midway e no Dia D.
O ADN é igualmente um código: aquele através do qual cada
ser vivo, cada organismo, comunica-se consigo mesmo e transmite as informações mais essenciais
a seus descendentes. É nessa língua, a mais antiga que existe, tão
estranha quanto elegante, que a
vida fala sobre si. Crick e seus colegas a decifraram, dando-nos
acesso consciente a seus quase infinitos documentos. Muito da
ciência futura consistirá em lê-los
e interpretá-los.
Tampouco é acidental, portanto, que, mudando novamente de
ramo, um dos pais da biologia
molecular se tornou um pioneiro
da neurociência e dedicou o restante de seus dias a tentar compreender o que é a consciência.
Ateu convicto, ele lhe procurava a
base biológica e observou: "Que
pode ser mais tolo do que fundamentar toda a visão da vida em
idéias que, por mais plausíveis
que tenham sido outrora, parecem agora totalmente equivocadas? E o que pode ser mais importante do que achar nosso verdadeiro lugar no universo removendo um a um esses vestígios infelizes de crenças ancestrais?".
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