São Paulo, sábado, 02 de agosto de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

crítica

Colombiana usa loucura para retratar país

VIVIEN LANDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O transtorno delirante é um mal de cabeça com vasta sintomatologia e inúmeras variantes. O paciente delira, sim, mas cada um à sua maneira intransferível. Há ataques de esquizofrenia em que o cidadão vê o cérebro sair da cabeça, dar uma voltinha, chocar-se contra a parede e voltar para o lugar de origem. O importante é que o doente não só visualiza, como sente na carne toda a trajetória dos miolos. Já o paranóico sofistica: encontra perseguição em toda parte, mas "normalmente" elege um vilão causador de todos os cataclismos do planeta e os seus pessoais. De preferência alguém bem próximo -o pai o filho, a mulher, o marido etc. Mas também vê coisas, como uma sala inteiramente arrombada pelos vizinhos, cheia de objetos estranhos colocados ali pelos mesmos. Se alguém chegar ao local vai se deparar com a mesma sala de sempre, mas isso não tem a menor importância para o acometido pelo delírio. Pois os loucos costumam ser autoritários, egoístas, irresponsáveis. Além de profundamente infelizes. Agustina Londoño surtou de repente, num quarto de hotel, onde o marido a encontrou oscilando entre a catatonia e a fúria. A partir daquele momento coube a ele, Aguilar, decifrar de onde veio tamanho desequilíbrio. A escritora colombiana Laura Restrepo optou por caminhos tão tortuosos quanto a própria doença mental para tentar solucionar um enigma quase sem resposta. Suas personagens derramam-se em torrentes de monólogos confessionais, juntando os pedaços podres da vida de Agustina -os pais em via de separação diante do adultério com a tia, o delicado irmão mais moço que um dia se revolta contra o pai e deflagra uma catástrofe, o ex-namorado enfiado até o pescoço na lavagem de dinheiro do tráfico de drogas, o avô alemão que pira pela nostalgia do Reno e por aí afora. Ou seja, uma vida normal, que não justifica o descalabro de ninguém -nem mesmo o dela. Acontece que esta cachoeira de idéias angustiantes embaladas em frases primorosas e com enorme economia de parágrafos (como aliás tem sido o recorrente estilo dos escritores contemporâneos, parece que ninguém mais gosta de parágrafos, nem de respirar) pode enlouquecer o leitor. Como comer caviar todos os dias. É uma overdose, tão familiar àquele país de cartéis de Medellín, Farc e reféns. O livro foi escrito em 2004, no auge da convergência de tantos problemas, o que certamente imbuiu a engajada autora. Em "A Noiva Escura", de 1999, seu único outro romance publicado no Brasil, o formato é bem mais tradicional e a aflição de existir menos presente. Premiada com o Alfaguara e o Prix de France, Laura Restrepo, 58 anos, por pouco consegue concluir um imenso retrato de seu país, de nosso continente e da alma humana ao mesmo tempo, tudo isso visto principalmente através dos olhos perplexos de um homem apaixonado pela mulher que a loucura tragou. O qual pode ser o mesmo olhar de uma população atônita diante da corrupção que a permeia. Ou qualquer outra metáfora pertinente. E, mesmo sem ter chegado lá em proposta tão grandiloqüente, "Delírio" oferece a poesia dos melhores momentos do realismo fantástico latino-americano, aliada à premência seca que os tempos atuais exigem.

VIVIEN LANDO é diretora cênica de ópera e escritora

DELÍRIO
Autora: Laura Restrepo
Tradução: Rosa Freire d'Aguiar
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 42 (296 págs.)
Avaliação: bom



Texto Anterior: Crítica/"A Arte de Produzir Efeito sem Causa": Literatura de Mutarelli fica à altura de história trash
Próximo Texto: Premiação: Man Booker Prize anuncia seus indicados
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.