São Paulo, terça-feira, 02 de agosto de 2011

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Até os atentados, pensávamos em nosso país como sendo virgem

JO NESBO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Antes do atentado a bomba aqui e do massacre na ilha de Utoya, um amigo e eu estávamos conversando sobre como a alegria de estar vivo sempre parece andar lado a lado com a tristeza pelo fato de que as coisas mudam.
Nem o mais brilhante futuro pode compensar o fato de que não há caminhos que nos levem de volta ao que aconteceu antes --à inocência da infância ou à primeira vez em que nos apaixonamos.
Não existe estrada de volta ao cheiro dos meses de julho, de quando eu era jovem e pulava do alto de uma pedra para dentro da água gelada de um fiorde norueguês.
Nem uma estrada que retorne ao momento em que, aos 17 anos de idade, eu estava de frente para o mar em Cannes, na França, vendo dois homens adultos trajando uniformes brancos idiotas, remando um barco que trazia uma mulher e seu poodle de um iate para a praia. Percebi então, pela primeira vez, que a sociedade igualitária da qual eu vinha era a exceção, e não a regra.
Tampouco há uma estrada de volta à primeira vez em que eu, estarrecido, olhei para os guardas com armas automáticas que cercavam o prédio do Parlamento de outro país --algo que me fez abanar a cabeça com um misto de resignação e satisfação, pensando: "No lugar de onde eu venho, não precisamos desse tipo de coisa".
Durante muitos anos, pareceu que nada mudara.
Você podia deixar o país por três meses para percorrer o mundo, passando por golpes de Estado, assassinatos políticos, situações de fome coletiva, massacres e tsunamis e, ao voltar para casa, constatar que a única coisa que tinha mudado nos jornais eram as palavras cruzadas.
Era um país onde as necessidades materiais de todos eram supridas. O consenso político era avassalador; as discussões eram voltadas principalmente a como alcançar as metas sobre as quais todos já estavam de acordo.
Divergências ideológicas só começaram a aparecer quando a realidade do resto do mundo começou a nos invadir quando uma nação que até os anos 1970 tinha sido feita em grande parte de pessoas com as mesmas origens étnicas e culturais precisou decidir se seus novos cidadãos deveriam ser autorizados a usar o hijab.
Mesmo assim, até sexta [dia 22], pensávamos em nosso país como sendo virgem.

JO NESBO é escritor norueguês. Este texto foi publicado no "New York Times".

Tradução de CLARA ALLAIN

Leia a versão do artigo publicado no "New York Times"
folha.com/il952624


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