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FERNANDO GABEIRA
A radical humanidade de frei Tito de Alencar
Nosso carro avançava pela rua
Toneleros, em Copacabana,
quando minha filha apontou para o quartel. "Gosto muito daquela frase: "Somos bombeiros, nada
do que é humano nos é indiferente'", disse.
Comentei rapidamente aquilo.
A frase era mais antiga do que o
quartel dos bombeiros. E não se
pode esquecer os bichos e as plantas. Ela respondeu: "Ah, quer dizer que alguém já falou isso antes?
Mas não se esqueça de que os
bombeiros também salvam bichos".
A conversa morreu quando entramos na orla da Lagoa. A imagem de frei Tito de Alencar me
veio à cabeça. Fui convidado para
falar na missa que celebra os 25
anos da morte de frei Tito. Ele suicidou-se na França, em 1974, alucinado com os fantasmas da tortura que sofreu no Brasil.
Eu o vi na Operação Bandeirantes, em 1970, e já naquela época
tentou cortar os pulsos para escapar do sofrimento e humilhação
dos torturadores. Foi um dos momentos mais impressionantes de
minha passagem pela prisão.
Sinto-me ligado ao martírio de
frei Tito não só porque vivemos a
mesma experiência política, passamos pela mesma cadeia, terminamos num mesmo exílio europeu. Sinto-me ligado a ele porque
sempre tentei explicar a mim
mesmo seu suicídio, e jamais consegui. Como se os fantasmas da
tortura e do suicídio tivessem a
capacidade de permanecer em
nossas cabeças sem que jamais os
expliquemos satisfatoriamente.
Frei Tito morreu no interior da
França. Suas crises o levaram a
buscar um trabalho manual. Ele
plantava e colhia legumes em
uma horta, vivia num quarto modesto, escrevia poesias no final da
jornada.
Se tivesse que explicar à minha
filha por que morreu frei Tito de
Alencar, iria aproveitar aquela
frase. Nada do que é humano era
indiferente para ele. Daí a enorme
dificuldade em integrar a tortura
e a crueldade que sofreu na cadeia na idéia do ser humano, criado à imagem e semelhança de
Deus.
Se os torturadores são humanos,
algo deles existe em nós. A saga
dos que viviam de dar choques
elétricos, ameaçar colocar crianças no pau-de-arara , romper tímpanos e a auto-estima estará para
sempre inscrita na história do gênero humano. A partir dessa experiência radical, a visão da humanidade nunca mais será a
mesma.
Arthur Miller, creio que em
"Depois da Queda", mostra um
personagem visitando um campo
de concentração, já desativado, e
se perguntando se depois daquilo
a poesia ainda era possível. Frei
Tito talvez se perguntasse se a
própria vida ainda era possível.
Seus versos indicavam que essa
hipótese dependeria do extermínio das "lembranças de um passado sombrio".
Não só a metafísica, mas também a poesia e a literatura entraram em parafuso quando se revelaram os segredos dos campos de
concentração. A resposta de alguns para esse impasse talvez possa contribuir para que se entenda
a trajetória de frei Tito.
De certa forma, creio que ele
conseguiu a redenção. Não a social nem a religiosa, mas a redenção sendo essa energia que passa
pelos tempos e faz você olhar sua
filha, 25 anos depois da morte, e
ter vontade de lhe contar histórias
de pessoas como frei Tito e outras
maravilhosas figuras da resistência que se mataram, no exílio ou
no Brasil. Pessoas que de forma
dramática viveram, radicalmente, a questão enunciada no quartel dos bombeiros: "Nada do que é
humano me é indiferente".
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