São Paulo, sábado, 02 de setembro de 2000


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RESENHA DA SEMANA
Naturalmente artificial

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Nos Estados Unidos, o conto é, mais do que um gênero literário, uma instituição. Como quase tudo naquele país, o conto foi incorporado de uma forma pragmática às demandas da sociedade.
As mais prestigiosas universidades americanas, que cobram altas anuidades sob a justificativa de melhor preparar seus alunos para o mercado, oferecem cursos de criação literária em que o conto é a principal matéria-prima.
Por toda parte, pululam revistas especializadas, embora os tempos já não sejam os de F. Scott Fitzgerald, que chegou a sobreviver, e bem, da venda de suas histórias.
Hoje, a maioria das revistas paga pouco, quando não paga nada. E ainda assim uma publicação de prestígio como a "The New Yorker", por exemplo, mantém um padrão especialmente elevado (US$1 por palavra) para os seletos ficcionistas que têm a honra de figurar em suas páginas.
Curioso é que, nesse país constituído pela competição e pelo mito da busca da excelência associada ao mercado, uma tendência literária que não é necessariamente a do best seller tenha terminado por se impor como padrão predominante de qualidade, em detrimento de outras possibilidades e estilos, criando um conto "tipicamente americano" e passando a servir de modelo à maioria dos cursos universitários de "creative writing", das revistas e dos jovens e ambiciosos candidatos a escritores.
É na tradição do realismo psicológico, que teve em Raymond Carver (1938-88) o seu mais célebre e provavelmente mais brilhante paradigma e renovador no final do século 20, e cujos parâmetros são professados por expoentes talentosos como Richard Ford, 56, e Tobias Wolff, 55, que o conto americano melhor se reconhece.
"A Noite em Questão", coletânea de Wolff lançada nos EUA em 96, reúne 15 contos anteriormente publicados em revistas. Alguns são especialmente comoventes, outros parecem se contentar em fazer retratos singelos da família e do cotidiano americano ou se esforçar demais para comover em sua aparente (e, no fundo, rebuscada) simplicidade, uma naturalidade de efeito programado que acaba se tornando o principal calcanhar-de-aquiles dessa "escola literária".
Por vezes, pode parecer que a verdade dos sentimentos, a compaixão e a amizade, pela recorrência e insistência com que são procuradas por esse realismo psicológico, não passam de afetação, elementos de uma cartilha ou fórmula para conquistar o leitor pelo consenso da comoção. E, como toda literatura é artifício, o que incomoda aí é justamente a pretensa naturalidade sentimental.
Tobias Wolff faz uma literatura em que a experiência é fundamental. O fato de o autor ter presenciado o que descreve dá maior verossimilhança não só aos seus livros de relatos mas à sua ficção. Daí a importância do elemento autobiográfico ressaltado em "This Boy's Life", de 89 -publicado pela Rocco como "O Despertar de um Homem", o mesmo título dado no Brasil à adaptação para cinema que revelou Leonardo DiCaprio.
As histórias mais dramáticas de "A Noite em Questão" também são, em geral, resultado da vivência do autor. Wolff combina a busca de situações de grande potencial emotivo -o que faz dele um herdeiro dos contos lacrimosos de O. Henry (1862-1910)- com uma economia mais moderna e minimalista, um gosto pelo não-dito. É o que resulta de sua escolha da Guerra do Vietnã como tema em "Baixa" e "O Outro Miller" (Wolf foi voluntário) ou da relação de uma mãe e um filho sozinhos e em dificuldades (como o próprio autor e sua mãe) em "Luz do Fogo".
Há também histórias em que a elaboração narrativa é bastante engenhosa. É o caso de "Mortais", "A Corrente" (a mais esquemática e moral), "A Noite em Questão" e "Uma Bala no Cérebro", uma pequena obra-prima em que o autor abandona a experiência própria para imaginar os últimos segundos da vida de um crítico literário baleado na cabeça enquanto espera, resmungando, na fila de um banco. É quando Wolff justifica a sua melhor e merecida reputação de contista.


A Noite em Questão
The Night in Question     Autor: Tobias Wolff Tradução: Aulyde Soares Rodrigues Editora: Rocco Quanto: R$ 24 (200 págs.)




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