|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"A TUMBA DO RELÂMPAGO"
Prosa fantástica e engajada vê Peru que não mudou
"À medida que desce para o fundo
do vale, o recém-chegado se sente
transparente, como um cristal onde
o mundo vibrasse. O viajante vindo
das terras frias se aproxima do rio,
atordoado, febril, com as veias inchadas. A voz do rio aumenta; não
ensurdece, exalta."
José Maria Arguedas, em "Os Rios
Profundos"
SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA
No Peru vivem quatro categorias de seres humanos. Os
homens do deserto costeiro, os
habitantes dos oásis poeirentos,
os impenetráveis homens das
Cordilheiras dos Andes e os exaltados moradores da selva.
A classificação, feita pelo escritor peruano Manuel Scorza (1928
-1983), mostra como as características físicas do país afastam e
diferenciam seus habitantes. Para
o autor, eles são "peruanos separados por montanhas, desertos e
bosques menos impenetráveis
que seus abismos sociais".
As relações entre a natureza, o
homem e a história de exploração
indígena que marca a trajetória
desse país andino são o mote da
obra de Scorza e estão expostos
em "A Tumba do Relâmpago".
Lançado em 1978, o livro chega às
livrarias em edição da Bertrand
Brasil.
O romance, mistura de panfleto
político com realismo mágico,
trata da luta dos camponeses dos
Andes peruanos pela recuperação
da posse da terra que pertenceu a
seus antepassados indígenas. O livro integra uma série de cinco títulos ("A Guerra Silenciosa") sobre as insurreições no país nos
anos 50 e 60.
O enredo tece conexão entre
tensão sociopolítica e sincretismo
religioso, mesclando uma prosa
lúcida -quando se trata de descrever processos de conscientização popular- com relatos fantásticos -nos momentos em que
crenças dimensionam o papel da
fé no pensamento do homem andino.
O Peru é um país de longa tradição de conflitos agrários. As comunidades camponesas, formadas em sua maioria por descendentes dos índios pré-colombianos, se mobilizam para reaver terras expoliadas desde o período da
colonização.
Da segunda metade do século 19
até o período em questão, levantes armados foram comuns no
país, numa tentativa das comunidades de resistir ao avanço dos latifúndios -herança da dominação espanhola e das empresas
multinacionais -exploradoras
de recursos naturais.
Em "A Tumba do Relâmpago",
um advogado recém-formado
(Genaro Ledesma) migra da cidade para uma aldeia nos Andes
centrais para defender comunidades de camponeses que tiveram
suas terras invadidas pela expansão capitalista.
Ledesma não tarda a perceber a
ineficácia das leis naquela fria e
distante realidade, transformando-se em ativista político e incentivador de levantes.
Ali, convive com tipos díspares
e complexos, como a cega Añada,
feiticeira que tece ponchos que
prevêem o futuro, o padre Chasán, angustiado por não conseguir fazer com que a fé cristã prevaleça sobre as crenças pagãs, e a
família Albornoz, de justiceiros
sanguinários.
Scorza mistura a narrativa com
excertos de pensadores da realidade peruana, como o poeta Cesar Vallejo e o escritor José Maria
Arguedas, conhecidos por terem
centrado suas obras nas agruras
do camponês peruano. Mas é
com o ensaísta José Carlos Mariátegui que o protagonista de Scorza dialoga diretamente. Mariátegui formulou e defendeu um socialismo que deveria unir a tradição indígena do Peru e sua posição contemporânea na América
Latina.
Por vezes, o excesso de engajamento ofusca a narrativa literária.
O autor faz questão de não esconder seu envolvimento com a causa -Scorza chega a aparecer como personagem, na pele de secretário do movimento comunal do
Peru, função que exerceu na vida
real.
O escritor, morto em acidente
de avião em 83, não pôde ver como a realidade que retratou seguiria sendo um problema crônico
no Peru até os dias atuais, mas
fornece elementos, ainda que literários, para compreender o histórico de governos autoritários que
o país conheceu neste século e que
ainda vive, com a recente e conturbada reeleição de Alberto Fujimori.
A Tumba do Relâmpago
La Tumba del Relámpago
Autor: Manuel Scorza
Tradução: Mario Pontes
Editora: Bertrand Brasil
Quanto: R$ 38 (336 págs.)
Texto Anterior: Livros/Lançamentos - "Gustavo Capanema": A ópera da cultura mineira Próximo Texto: Resenha da Semana - Bernardo Carvalho: Naturalmente artificial Índice
|