São Paulo, sábado, 02 de setembro de 2000


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"A TUMBA DO RELÂMPAGO"
Prosa fantástica e engajada vê Peru que não mudou

 "À medida que desce para o fundo do vale, o recém-chegado se sente transparente, como um cristal onde o mundo vibrasse. O viajante vindo das terras frias se aproxima do rio, atordoado, febril, com as veias inchadas. A voz do rio aumenta; não ensurdece, exalta." José Maria Arguedas, em "Os Rios Profundos"

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

No Peru vivem quatro categorias de seres humanos. Os homens do deserto costeiro, os habitantes dos oásis poeirentos, os impenetráveis homens das Cordilheiras dos Andes e os exaltados moradores da selva.
A classificação, feita pelo escritor peruano Manuel Scorza (1928 -1983), mostra como as características físicas do país afastam e diferenciam seus habitantes. Para o autor, eles são "peruanos separados por montanhas, desertos e bosques menos impenetráveis que seus abismos sociais".
As relações entre a natureza, o homem e a história de exploração indígena que marca a trajetória desse país andino são o mote da obra de Scorza e estão expostos em "A Tumba do Relâmpago". Lançado em 1978, o livro chega às livrarias em edição da Bertrand Brasil.
O romance, mistura de panfleto político com realismo mágico, trata da luta dos camponeses dos Andes peruanos pela recuperação da posse da terra que pertenceu a seus antepassados indígenas. O livro integra uma série de cinco títulos ("A Guerra Silenciosa") sobre as insurreições no país nos anos 50 e 60.
O enredo tece conexão entre tensão sociopolítica e sincretismo religioso, mesclando uma prosa lúcida -quando se trata de descrever processos de conscientização popular- com relatos fantásticos -nos momentos em que crenças dimensionam o papel da fé no pensamento do homem andino.
O Peru é um país de longa tradição de conflitos agrários. As comunidades camponesas, formadas em sua maioria por descendentes dos índios pré-colombianos, se mobilizam para reaver terras expoliadas desde o período da colonização.
Da segunda metade do século 19 até o período em questão, levantes armados foram comuns no país, numa tentativa das comunidades de resistir ao avanço dos latifúndios -herança da dominação espanhola e das empresas multinacionais -exploradoras de recursos naturais.
Em "A Tumba do Relâmpago", um advogado recém-formado (Genaro Ledesma) migra da cidade para uma aldeia nos Andes centrais para defender comunidades de camponeses que tiveram suas terras invadidas pela expansão capitalista.
Ledesma não tarda a perceber a ineficácia das leis naquela fria e distante realidade, transformando-se em ativista político e incentivador de levantes.
Ali, convive com tipos díspares e complexos, como a cega Añada, feiticeira que tece ponchos que prevêem o futuro, o padre Chasán, angustiado por não conseguir fazer com que a fé cristã prevaleça sobre as crenças pagãs, e a família Albornoz, de justiceiros sanguinários.
Scorza mistura a narrativa com excertos de pensadores da realidade peruana, como o poeta Cesar Vallejo e o escritor José Maria Arguedas, conhecidos por terem centrado suas obras nas agruras do camponês peruano. Mas é com o ensaísta José Carlos Mariátegui que o protagonista de Scorza dialoga diretamente. Mariátegui formulou e defendeu um socialismo que deveria unir a tradição indígena do Peru e sua posição contemporânea na América Latina.
Por vezes, o excesso de engajamento ofusca a narrativa literária. O autor faz questão de não esconder seu envolvimento com a causa -Scorza chega a aparecer como personagem, na pele de secretário do movimento comunal do Peru, função que exerceu na vida real.
O escritor, morto em acidente de avião em 83, não pôde ver como a realidade que retratou seguiria sendo um problema crônico no Peru até os dias atuais, mas fornece elementos, ainda que literários, para compreender o histórico de governos autoritários que o país conheceu neste século e que ainda vive, com a recente e conturbada reeleição de Alberto Fujimori.


A Tumba do Relâmpago
La Tumba del Relámpago      Autor: Manuel Scorza Tradução: Mario Pontes Editora: Bertrand Brasil Quanto: R$ 38 (336 págs.)




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