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São Paulo, terça-feira, 02 de setembro de 2003

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HISTÓRIA

É relançado livro sobre a revolta de negros muçulmanos em 1835

"Aventura" dos malês pôs tráfico em xeque

RAFAEL CARIELLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Foi preciso uma intervenção de Alá para que a história da escravidão e da resistência dos escravos africanos no Brasil pudesse ser melhor contada.
Em "A Rebelião Escrava no Brasil", agora relançado (em versão ampliada e revista) pela Companhia das Letras, o historiador João José Reis faz a crônica de uma revolta delatada: o levante dos malês -como eram conhecidos os escravos muçulmanos no país - em 1835, na Bahia.
No dia 25 de janeiro, um grupo de escravos nascidos na África, em sua maioria seguidores do Corão, combateu soldados da Guarda Nacional, em Salvador, que defendiam símbolos do poder na cidade visados pelos revoltosos, como a Câmara Municipal, em cujo subsolo ficava a cadeia da cidade.
Não se tratava de simples revolta. "A cidade mergulhara no ritmo de uma grande aventura de luta pelo poder", afirma Reis.
Para melhor situar o levante, ele analisa um período único de revoltas escravas no país, durante a primeira metade do século 19, mostrando as condições necessárias para que elas ocorressem e o que precipitou o seu fim. Como consequência, o próprio modo como se organizava a escravidão se torna melhor conhecido.
Os revoltosos foram derrotados, e o islamismo "mergulhou na clandestinidade". O fato de terem sido delatados antes mesmo do início do levante talvez tenha contribuído para isso. Guilhermina Rosa de Souza, africana liberta, contou a seu antigo senhor o que estava sendo preparado.
Sua prova de lealdade ao ex-senhor bem como o fato de a maioria dos revoltosos serem africanos -e não escravos nascidos no Brasil, os crioulos- não eram detalhes gratuitos da história.
Há uma ligação estreita entre revoltas e tráfico de escravos, defende Reis. Isso mantém a importância do islamismo como fator ideológico crucial para o levante, mas aponta para um movimento em que as razões étnicas e sociais têm tanto peso quanto a religião.
"Entre 1821 e 1825, a Bahia importou 23.700 escravos, o menor volume durante um quinquênio desde 1801. Pois nesses anos aconteceram apenas duas revoltas [...]. Nos cinco anos seguintes, a Bahia importou o dobro, 47.900 escravos, e não se passou um ano sem que fosse registrado pelo menos um levante", afirma.
Os africanos, defende o autor, mais do que os crioulos, estavam propensos a revoltar-se coletivamente contra a escravidão.
"Os afro-brasileiros haviam nascido e se socializado na escravidão e, portanto, ao contrário dos africanos, não tinham um ponto de referência (e radical contradição) fora dessa experiência." No caso dos malês, tratavam-se de guerreiros aprisionados e vendidos por Estados africanos aos traficantes brasileiros. Ademais, por seguirem a fé muçulmana, sabiam ler e escrever, o que facilitava sua organização.
Além disso, o fato de quase não haver mulheres entre os africanos contribuía para as diversas formas de rebelião, diferente do "setor brasileiro" da população escrava, que se casava com mais facilidade. "A família é predominantemente um fator de integração social ou, no máximo, ruptura pacífica, como a fuga", escreve.
A efervescência de revoltas escravas na primeira metade do século 19 foi ajudada pela instabilidade política vivida no país da independência à coroação de d. Pedro 2º -que dividia os brancos e fragilizava o controle aos cativos.
Após o declínio do tráfico e sua extinção em 1850, prevaleceria "um percurso mais calmo" na resistência escrava. Paradoxalmente, é esse mesmo fim do tráfico que porá a escravidão com dias contados, já que a renovação de cativos ficava interditada. Mas isso é assunto de outros autores.

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