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São Paulo, terça-feira, 02 de setembro de 2003

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BERNARDO CARVALHO

A realidade replicante

Para quem se preocupa mais em ser escritor do que em escrever, pode ser difícil captar o que se passava na cabeça de um homem como o austríaco Hermann Broch (1886-1951), que se tornou um dos maiores escritores do século 20 "à sua revelia". O fato é que Broch era um caso excepcional em seu próprio tempo. Para ele, a tarefa da obra de arte era "a recriação constante do mundo". E para isso, era preciso expandir a consciência, alargar a realidade.
Broch achava que era preciso fazer coincidir o trabalho artístico, o científico e o político numa única atividade, sem que houvesse submissão de um aos outros, sem que houvesse submissão a nenhum tipo de dogma, embora no final da vida tenha duvidado da capacidade da literatura para "recriar o mundo", e privilegiado a ciência, como assinala Hannah Arendt num belo texto sobre o escritor incluído na coletânea "Homens em Tempos Sombrios".
A bem-vinda publicação de "Os Sonâmbulos" (pela editora Germinal, infelizmente com o nome do autor grafado errado na capa) é uma ocasião oportuna para lembrar o pensamento idiossincrático de Broch, inspirado por um certo platonismo cristão. Paralelamente ao impressionante trabalho literário que resultou nas obras-primas "Os Sonâmbulos", "A Morte de Virgílio" e "Os Inocentes" (ou "Os Irresponsáveis", dependendo da tradução), Broch refletiu sobre a literatura com uma consistência e uma coerência surpreendentes (seis desses ensaios foram publicados recentemente nos Estados Unidos sob o título "Geist and Zeitgeist", ed. Counterpoint).
O pensamento estético de Broch é uma reação à desintegração dos valores, à arte-pela-arte e ao kitsch, manifestações típicas de um mundo "desespiritualizado" como a Europa na virada do século e às vésperas do nazismo. Para Broch, a cultura deve ser o esforço de criar um valor positivo absoluto, da vida e da civilização, contra o absoluto negativo da morte -e esse valor só pode ser o conhecimento. Daí a literatura de par com a ciência. Não com o positivismo racionalista e a tecnologia replicante tão característicos da época "desespiritualizada" de que Broch falava e cuja tragédia "Os Sonâmbulos" anuncia tão bem, mas com uma ciência capaz de dar uma nova unidade ao mundo, tarefa antes atribuída ao mito.
Talvez seja mais fácil compreender esse pensamento pelo que ele ataca. O que é o kitsch para Broch? É a arte da imitação e da reprodução. O escritor não define o kitsch pelo estilo, pelo mau gosto, mas pela traição da própria função da arte. Para Broch, o kitsch é o estético no lugar do ético. E isso é muito mais abrangente do que um simples estilo de mau gosto. É a arte que se contenta em perpetuar o que já é conhecido, em replicar a realidade, o que todo mundo vê, e que assim promove um estreitamento da consciência. O kitsch não aumenta o conhecimento e a percepção do universo, não se arrisca rumo ao desconhecido. Nesse sentido, ele é a antiarte.
Broch estava falando de uma arte burguesa, que encobria a miséria humana e social com uma capa de entretenimento e esteticismo, mas também da arte que edulcora a miséria humana e social com um verniz poético, "com estilo", para fazê-la bela e "literária", reproduzindo-a mesmo sob o pretexto de denunciá-la. O kitsch abrange, assim, também um certo populismo, pois é kitsch tudo o que se contenta em agradar e satisfazer as demandas do seu tempo.
Seria kitsch, por exemplo, não somente Nero incendiando Roma pela simples beleza inconsequente do espetáculo, mas também o sujeito que, sabendo ou intuindo que a Terra é redonda, ainda assim preferisse continuar dizendo que ela é plana, para condizer com a época e a maioria -e não acabar na fogueira. Para Broch, a arte de verdade, como a ciência, "desperta novas necessidades e torna-se assim fator crucial no crescimento de uma nova época".
Não é por acaso que ele via em "Ulisses", de James Joyce, o exemplo máximo da literatura entre seus contemporâneos. Também não é à toa que tenha escrito os romances que escreveu. É preciso ir contra o seu tempo para alcançá-lo. "Ulisses", por exemplo, cria uma "realidade antecipatória". Não basta à literatura fazer a ilustração da sua época (ou da ciência da sua época). Não basta observar e descrever a realidade. Não basta representar a atualidade. É preciso ir além. Forma e conteúdo devem estar integrados. A forma já é a idéia, o que permite que o relato de uma pacata dona de casa seja eventualmente muito mais forte e violento do que as memórias do mais implacável dos matadores. É isso o que há de mais surpreendente e libertário em literatura.
"Em outras palavras, a obra de arte maior só costuma ser aceita ao final da sua época, enquanto a arte menor, ou seja, a que não alcança nem pretende alcançar a totalidade do seu tempo, mas se satisfaz em servir às necessidades da época, isto é, em ser parte da estrutura e do estilo da época, costuma se extinguir ao final desse período", escreveu Broch. Para fazer "a verdadeira recriação da sua época", é preciso alcançar o "mítico na simbolização das forças misteriosas que trabalham no caos", mas isso, para infelicidade de muita gente, não depende só da vontade dos escritores.


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