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BERNARDO CARVALHO
A realidade replicante
Para quem se preocupa mais
em ser escritor do que em escrever, pode ser difícil captar o
que se passava na cabeça de um
homem como o austríaco Hermann Broch (1886-1951), que se
tornou um dos maiores escritores
do século 20 "à sua revelia". O fato é que Broch era um caso excepcional em seu próprio tempo. Para ele, a tarefa da obra de arte era
"a recriação constante do mundo". E para isso, era preciso expandir a consciência, alargar a
realidade.
Broch achava que era preciso
fazer coincidir o trabalho artístico, o científico e o político numa
única atividade, sem que houvesse submissão de um aos outros,
sem que houvesse submissão a nenhum tipo de dogma, embora no
final da vida tenha duvidado da
capacidade da literatura para
"recriar o mundo", e privilegiado
a ciência, como assinala Hannah
Arendt num belo texto sobre o escritor incluído na coletânea "Homens em Tempos Sombrios".
A bem-vinda publicação de "Os
Sonâmbulos" (pela editora Germinal, infelizmente com o nome
do autor grafado errado na capa)
é uma ocasião oportuna para
lembrar o pensamento idiossincrático de Broch, inspirado por
um certo platonismo cristão. Paralelamente ao impressionante
trabalho literário que resultou
nas obras-primas "Os Sonâmbulos", "A Morte de Virgílio" e "Os
Inocentes" (ou "Os Irresponsáveis", dependendo da tradução),
Broch refletiu sobre a literatura
com uma consistência e uma coerência surpreendentes (seis desses
ensaios foram publicados recentemente nos Estados Unidos sob o
título "Geist and Zeitgeist", ed.
Counterpoint).
O pensamento estético de Broch
é uma reação à desintegração dos
valores, à arte-pela-arte e ao
kitsch, manifestações típicas de
um mundo "desespiritualizado"
como a Europa na virada do século e às vésperas do nazismo. Para Broch, a cultura deve ser o esforço de criar um valor positivo
absoluto, da vida e da civilização,
contra o absoluto negativo da
morte -e esse valor só pode ser o
conhecimento. Daí a literatura de
par com a ciência. Não com o positivismo racionalista e a tecnologia replicante tão característicos
da época "desespiritualizada" de
que Broch falava e cuja tragédia
"Os Sonâmbulos" anuncia tão
bem, mas com uma ciência capaz
de dar uma nova unidade ao
mundo, tarefa antes atribuída ao
mito.
Talvez seja mais fácil compreender esse pensamento pelo
que ele ataca. O que é o kitsch para Broch? É a arte da imitação e
da reprodução. O escritor não define o kitsch pelo estilo, pelo mau
gosto, mas pela traição da própria
função da arte. Para Broch, o
kitsch é o estético no lugar do ético. E isso é muito mais abrangente do que um simples estilo de
mau gosto. É a arte que se contenta em perpetuar o que já é conhecido, em replicar a realidade, o
que todo mundo vê, e que assim
promove um estreitamento da
consciência. O kitsch não aumenta o conhecimento e a percepção
do universo, não se arrisca rumo
ao desconhecido. Nesse sentido,
ele é a antiarte.
Broch estava falando de uma
arte burguesa, que encobria a miséria humana e social com uma
capa de entretenimento e esteticismo, mas também da arte que
edulcora a miséria humana e social com um verniz poético, "com
estilo", para fazê-la bela e "literária", reproduzindo-a mesmo sob
o pretexto de denunciá-la. O
kitsch abrange, assim, também
um certo populismo, pois é kitsch
tudo o que se contenta em agradar e satisfazer as demandas do
seu tempo.
Seria kitsch, por exemplo, não
somente Nero incendiando Roma
pela simples beleza inconsequente do espetáculo, mas também o
sujeito que, sabendo ou intuindo
que a Terra é redonda, ainda assim preferisse continuar dizendo
que ela é plana, para condizer
com a época e a maioria -e não
acabar na fogueira. Para Broch, a
arte de verdade, como a ciência,
"desperta novas necessidades e
torna-se assim fator crucial no
crescimento de uma nova época".
Não é por acaso que ele via em
"Ulisses", de James Joyce, o exemplo máximo da literatura entre
seus contemporâneos. Também
não é à toa que tenha escrito os
romances que escreveu. É preciso
ir contra o seu tempo para alcançá-lo. "Ulisses", por exemplo, cria
uma "realidade antecipatória".
Não basta à literatura fazer a
ilustração da sua época (ou da
ciência da sua época). Não basta
observar e descrever a realidade.
Não basta representar a atualidade. É preciso ir além. Forma e
conteúdo devem estar integrados.
A forma já é a idéia, o que permite que o relato de uma pacata dona de casa seja eventualmente
muito mais forte e violento do que
as memórias do mais implacável
dos matadores. É isso o que há de
mais surpreendente e libertário
em literatura.
"Em outras palavras, a obra de
arte maior só costuma ser aceita
ao final da sua época, enquanto a
arte menor, ou seja, a que não alcança nem pretende alcançar a
totalidade do seu tempo, mas se
satisfaz em servir às necessidades
da época, isto é, em ser parte da
estrutura e do estilo da época, costuma se extinguir ao final desse
período", escreveu Broch. Para fazer "a verdadeira recriação da
sua época", é preciso alcançar o
"mítico na simbolização das forças misteriosas que trabalham no
caos", mas isso, para infelicidade
de muita gente, não depende só
da vontade dos escritores.
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