São Paulo, sexta-feira, 02 de setembro de 2005

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Carlos Lyra faz balanço da bossa nova, tema do documentário "Coisa Mais Linda"

Questão de CLASSE

Divulgação
O músico Carlos Lyra, no documentário "Coisa Mais Linda"


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

A bossa nova não é uma música de geração, mas de classe social; o povo não pode entendê-la, porque não tem ilustração; comunismo é "sabonete Phebo e uísque importado" para todos.
São idéias de Carlos Lyra, 70, nome fundamental na bossa nova e no documentário "Coisa Mais Linda", de Paulo Thiago, que estréia hoje. A seguir, Lyra em outras palavras.
 

Folha - Qual é o equivalente da bossa nova no cenário atual?
Carlos Lyra -
Hoje não há expressão nenhuma na cultura brasileira. Desde o golpe militar de 1964, temos tido uma economia mais ou menos e uma política que é um lixo, uma seqüência de corrupção. Nesse ambiente, a cultura não encontra espaço.
Hoje, a universidade ensina tecnologia, não conhecimento universal. Até já tiraram o inglês do Itamaraty [o idioma deixou de ser eliminatório no teste de ingresso à carreira diplomática]. Nosso presidente se vangloria de não haver estudado. Que belo exemplo!

Folha - O sr. tem um livro inédito sobre as circunstâncias socioeconômicas que resultaram na bossa nova. No entanto, este é um aspecto apenas lateral no documentário.
Lyra -
Tenho muito mais comentários a fazer do que era possível incluir no filme. No governo JK [1956-61], houve grande élan econômico, que gerou tranqüilidade política e efervescência cultural. Mas a bossa nova não é música de geração. É de classe social. Música feita pela classe média da zona Sul do Rio, enquanto era capital. Depois que tiraram a capital de lá, nada mais se fez que valesse a pena, com as honrosas exceções.

Folha - Não vê o hip hop como expressão cultural que traduz o país?
Lyra -
Hip hop é manifestação da periferia. Não há como ter cultura no caos que vivemos. A classe média está tão amarrotada que nós, bossa-novistas, temos mais sucesso no Japão e na Europa.
O povo não pode entender a bossa nova, porque ela foi à universidade. Eu gostaria que o povo pudesse consumir a bossa nova.
Minha idéia de comunismo não é macacão e marmita. É sabonete Phebo e uísque importado para todos. Segundo li em Marx, bens de consumo são para consumir. Dizem que a bossa nova é elitista. Chegam ao cúmulo de dizer que cultura é elitismo. Aí você cai no Lula, nisso de que, para ser popular, tem de ser analfabeto.

Folha - O sr. parece ter uma visão desesperançada do Brasil.
Lyra -
Não. Acho que a faxina pode ser boa para o Brasil, se expulsarem os gatunos do Planalto. Fomos idiotas da última vez que votamos. Votamos mal pra burro. Mas o cardápio nunca é satisfatório. Temos o ruim e o menos pior.
A esperança é a última que morre. Mas temos de ser realistas. Eu nunca acreditei que o PT no poder ia ser a solução. [A atriz] Regina Duarte também não.

Folha - Ela disse ter medo.
Lyra -
É. Foi um depoimento meio terrorista, mas ela disse o que pensava. Ela disse o que eu pensava. E vieram todas as patrulhas ideológicas em cima.

Folha - Como vê o tropicalista Gilberto Gil no Ministério da Cultura?
Lyra -
É uma figura simbólica. Um artista, não um político. Não queria estar na pele dele. Eu o conheço e sei que é absolutamente íntegro. Mas pode ser confundido com os bandidos de Brasília. Aceitou o desafio. Está fazendo o que pode. Mas está amarrado. Não dão dinheiro para ele. Como fazer ação cultural sem dinheiro?


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