São Paulo, quinta-feira, 02 de setembro de 2010

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NINA HORTA

Cozinha espacial


A alimentação por pílulas foi, durante um certo tempo, um sonho nosso. Mas os astronautas padeceram

PEGUEI O livro só por curiosidade. Chama-se "Packing for Mars" (arrumando as malas para Marte), de Mary Roach. É uma escritora séria e dessa vez resolveu pesquisar os foguetes espaciais, onde muitas coisas não podem acontecer, como dormir na cama, levantar, ir ao banheiro, chuveirada, tomar café da manhã na mesa da copa com direito a laranjada e pão quente.
Quanto tempo podemos viver sem essas pequenas coisas que fazem o nosso dia a dia? Quanta novidade nosso corpo e nossa cabeça podem aguentar? Flutuar é engraçado, mas é o que mais aumenta a vontade de andar.
Quanto tempo um ser humano sobrevive com as comidas inventadas pelas cozinhas militares? Ou melhor, durante quanto tempo ele quer comer aquela comida? Qual o efeito dessa dieta sobre o moral?
No anos 64 os idealizadores de comida acharam que pessoas no espaço, com coisas interessantíssimas a fazer e grandes responsabilidades, não precisavam ficar enchendo a boca e mastigando. Errado, era o que os astronautas mais queriam. Comer por tubos também não fez sucesso, que diabo disso era aquilo, sem cheiro, sem consistência, sem cor, sem identidade?
Um dos problemas com as primeiras comidas espaciais é que a situação, por si só já tão difícil e complexa, precisava de alguma coisa reconhecível e familiar. A cozinha espacial, a alimentação por pílulas foi, durante um certo tempo, um sonho nosso. Livres do fogão e da pia. Mas os astronautas padeceram.
A comida numa cápsula espacial tem que ser leve. Cada quilo a mais que a Nasa lança custa milhares de dólares em combustível para colocar em órbita. Tem que ter densidade calórica, a maior quantidade de nutrição e energia no menor volume. E as migalhas precisam ser evitadas. Aquelas que caem do nosso pão matinal e são comidas pelo cachorro ou engolidas pelo aspirador. Já pensou em todas elas passeando na nave e atrapalhando os cálculos, entrando nos olhos, nos pescoços, como mosquitos infernais?
Parece que o erro inicial é terem se voltado para o aconselhamento de nutricionistas. Na verdade, até de veterinários, que quando alimentam os animais misturam tudo o que lhes é necessário num saco e deixam que comam o quanto quiserem. O que mais precisa um astronauta? Os infelizes sugeriam jejum (para escapar da ração) e ainda havia a alegria de não precisar evacuar num saquinho. E as fezes? A possibilidade de reutilização tem sido aventada, ao que os astronautas replicam. Esqueçam, não vamos comer cocô na volta e ponto final.
Ironicamente a comida mais apropriada para as funções intestinais era exatamente o que o astronauta queria comer. Um bifão. Proteína animal e gordura são as mais digeríveis das comidas da terra. Outra ótima, o ovo. Já pensaram que cena uma galinha botando no ar, pernas reviradas para cima, piscando, o ovo se afastando indeciso?
Por essas e por outras, o obstáculo mais difícil para as viagens espaciais é o homem. Qualquer outra peça importante, por mais complicada que seja, é fácil de lidar. Não precisa dormir, não se apaixona pela chefe da missão, não tem vergonha da nudez, depressão, nem quer comungar aos domingos. A única peça que pode atrapalhar a viagem é o homem. É melhor desistir dela. Não da viagem, mas do homem. Para que servem afinal, os robôs?

ninahorta@uol.com.br


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