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Precisamos inventar um novo Bem e um novo Mal
ARNALDO JABOR
da Equipe de Articulistas
O papa vem aí. É o Bem encarnado. "Oba, chegou o
Bem!" Mas o Bem tem de ser
protegido pelo "papamóvel".
Senão o Mal taca bala nele. O
Bem vive dentro de uma cabine telefônica. Já pensou o papa, morto por uma bala perdida?
Viram aquelas mulheres gritando na TV contra a "lei do
aborto"? Uivavam: "Não
queremos uma lei que proteja
estupradas e fetos doentes".
Fiz uma frase: "Meu Deus, como a santidade é violenta!"
O Mal é o Bem ou o Bem é o
Mal? O aborto legal é o Mal? O
Bem é deixar nascer trágicos
desgraçados? Outro dia, um
bispo sugeriu que os filhos
anormais ou de estupradas
fossem criados pela igreja.
Já pensou? É o pior cenário:
"Quem é você?". "Eu sou o
filho do Bandido da Luz Vermelha, sendo educado pelo d.
Lucas Moreira Neves..."
Antigamente, era mole. O
Mal era o capitalismo, e o
Bem, o socialismo. Agora os intelectuais, padres, bondosos
profissionais, caridosos de carteirinha, cafetões da miséria,
santos oportunistas, estão todos em pânico.
Se não houver um Mal claro,
como seremos bons? O Mal é
sempre o outro. Nunca somos
nós. Ninguém diz, de fronte alta: "Eu sou o Mal!". Ou:
"Muito prazer, Diabo de Oliveira...".
O problema é que cada vez
há mais "outros" e cada vez
menos "nós". O Bem está virando um luxo, e o Mal está
virando uma necessidade social.
Viver é praticar o Mal. Como
ser feliz olhando as crianças
famintas? Temos de fechar os
olhos. A felicidade é uma virtude excludente.
"Sou feliz, se conseguir manter os olhos 'wide shut'." Ser
feliz é não ver. O Mal está virando um mecanismo de defesa. Quem é o Mal: o assaltante
faminto ou o assaltado rico?
Ou nenhum dos dois? É o
neoliberalismo? Quem é o planejador do Mal? O Japão vai
parar de produzir robôs e empregar a mão-de-obra faminta
da Somália?
Quem controla o Mal? Pra
uns, é o Consenso de Washington. Para outros, somos nós, os
"da merda". Como praticar o
Bem? Apenas se horrorizando
com o Mal? Como inventar
uma práxis do Bem? Não vale
ficar "tristinho", nem lançar
apenas apelos à razão ou à caridade.
Eu fiz tudo para ser um homem de Bem. Serei um canalha? Todos se acusam mutuamente. Todos querem ser o
Bem.
Durante o regime militar, todos éramos o Bem. O Mal eram
os milicos. Acabou a dita, e as
"vítimas" (dela) pilharam o
Estado.
O que é o Bem hoje? É lamentar tristemente uma impotência, é um negror melancólico, é
um elogio da morte? Ou o Bem
é ser pragmático, frio?
O Bem é ser forte ou ser fraco? É uma identificação mecânica com os pobres ou um desejo protestante de melhorar
na vida?
O Bem é um desejo de harmonia, de uno, de totalidade,
ou o Bem é suportar ceticamente o múltiplo, o fragmento,
o indizível, o incontrolável, a
impotência "democrática"?
O sonho de Bem está milenarmente ligado à idéia de
"totalidade". Pensamos com
o corpo, queremos que o mundo seja um "todo harmônico"
como o nosso organismo.
A idéia de "fragmentário"
gera angústia porque lembra a
morte. Todo pensamento (todo
"Bem") aspira à totalidade.
Mas, com a queda das utopias, a razão se disfarça e finge
querer a diferença. Tudo mentira. O culto ao fragmentário
se reerige em totalidade e começa tudo de novo. (Cruzes, a
boneca está filosófica hoje...)
O problema hoje é que o Mal
quer ser Bem. Até o Unabomber é o Bem. O Mal hoje é um
excluído. Até pelo próprio Mal.
Onde está o Mal? Entre os
terroristas, no meio da miséria, entre fezes? O Mal ficou arcaico.
Tanto que o Mal dos terroristas argelinos, por exemplo,
consiste em injetar o arcaico
no moderno, esse inferno
"clean" que o capital inventou.
Ao denunciar o Mal, vivemos
dele. Eu lucro sendo bom e denunciando o Mal. Quanta violência sob a santidade, repito.
E não adianta tentar a "beleza do Mal" como saída, como busca invertida do Bem. Já
foi tentado: o culto à perversão, a antiarte, tudo, não deu
em nada. Há uma nova categoria de Mal a ser inventada.
Para a razão digital, o Mal
no mundo atual é o "incompreensível". Como diz Baudrillard, "contra o Mal, só temos o fraco recurso dos direitos humanos".
Quando (digo eu) só o Mal
pode dar conta do Mal, o Bem
tem de conhecer o Mal e se travestir dele para combatê-lo. O
Bem ingênuo só serve de alimento para o Mal.
No Brasil, o Mal, o grande
Mal, não tem importância. O
perigo aqui é o pequeno Mal,
enquistado nos estamentos,
nos aparelhos sutis do Estado,
nos seculares dogmas jurídicos, nos crimes que são lei.
Aqui o perigo é o Bem. O Mal
no Brasil não estava em Collor
(sempre senti um certo exagero
histérico no ódio que lhe dedicamos), o Mal está aqui nos
pequenos psicopatas que, quietinhos, nos roem a vida.
Aqui o grande canalha serve
para camuflar os pequenos
(que são os grandes) canalhas.
O Mal do Brasil não está na infinita crueldade dos torturadores ou das elites sangrentas,
está mais na sua cordialidade.
O Mal está no mínimo.
"É um Mal não frequentar o
Bem", como dizia o slogan do
"Bar Bem", onde íamos comer as putas na Barra da Tijuca do passado, quando não havia motéis, quando pecávamos
em grande liberdade, imersos
na vergonha e no delicioso sentimento de culpa.
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