São Paulo, terça, 2 de setembro de 1997.



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CRÍTICA
Álbum reata carreira

do enviado especial

Tem sido generoso para a música popular brasileira -para o samba, caso queira- este final de década. No ano passado, Paulinho da Viola quebrou jejum discográfico de oito anos, com "Bebadosamba". Agora, é a vez de Elza Soares.
Ela nem pode ser definida como equivalente feminino de Paulinho -sempre foi muito mais despachada-, mas em "Trajetória" quase vem em tal transmutada -talvez por obra do diretor artístico Sérgio de Carvalho e do arranjador Cristóvão Bastos, também presentes em "Bebadosamba".
Trata-se, como no caso de Paulinho, de um disco de síntese, que vem restabelecer -e revisar- história que andava interrompida.
"Trajetória" flagra o mesmo talento em estado bruto exibido nas últimas quase quatro décadas, de uma cantora de voz inigualável que sempre fez questão de agir como gata selvagem, maltratando cordas vocais com sublimes e agressivos vocalises jazzísticos.
A voz de Elza, ainda que atritada pelo tempo e pela fúria de cantar, reaparece vigorosa e expõe o que ninguém pode ignorar: a matriz definida por ela é referência obrigatória a qualquer cantora de raça que passe pelo Brasil.
A título de exemplo, em ordem aproximadamente cronológica: sem Elza não existiriam Wanderléa, Clara Nunes, Beth Carvalho, Baby Consuelo, Lady Zu, Frenéticas, Sandra de Sá, Angela Ro Ro, Virgínia Rosa, Cássia Eller, Daúde.
Elza surgiu, em 60, para conduzir o trânsito do suingue do samba e da bossa negra -que ela inventou- ao pop de qualquer cor. Por isso Baby Consuelo é a melhor tradução -branca- de Elza Soares.
Por isso Fernanda Abreu, cantando "Escurinho" e gritando "fui!" em "Kátia Flávia" -requintes recolhidos da professora-, reencarna Elza nos anos 90.
Mas, a quem pensasse que fossem necessárias sucessoras, eis que ela ressurge em "Trajetória". Se os arranjos pendem ao convencional, o CD ainda assim esbanja voz e inteligência de repertório.
Passeia sôfrega por samba-exaltação ("Rio de Janeiro"), fundo de quintal ("Sinhá Mandaçaia", em dueto com Zeca Pagodinho), samba de morro ("Lá no Alto da Colina"), bossa negra ("Liberdade para Amar", co-escrita por ela), MPB (dorida leitura de "O Meu Guri", de Chico Buarque).
Ainda reata laços com sua estirpe, cantando "Bom-Dia", do repertório de um de seus ídolos, Dalva de Oliveira (o outro é Angela Maria), e a delicada "Chuvas de Verão", de Fernando Lobo. Passa de leve pela própria história, retomando "Boato", sucesso de 60.
Nada supera, no entanto, os -numerosos- momentos de dor do CD. Nascem prontos para ficar na história sambas desesperados como "Trajetória" e "Estou Lhe Devendo um Sorriso".
O recado é tão simples quanto radical: a MPB ainda tem espaço para a pureza, o samba vai muito bem, obrigado. Que Elza nunca mais abandone seu país, que as gravadoras nunca mais a abandonem. (PAS)

Disco: Trajetória Artista: Elza Soares Lançamento: Universal Quanto: R$ 18, em média



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