|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
GOSTEI
Fácil de admirar e difícil de amar
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Pouco após a projeção para a
imprensa de "De Olhos Bem Fechados", alguém da platéia se perguntava: "Mas será que eu vou ter
vontade de ver esse filme pela terceira vez?".
A pergunta resume um sentimento sobre quase toda a obra de
Stanley Kubrick, e vale também
para este seu último trabalho. O
gênio desse cineasta é evidente.
Quantos mais colocariam uma
estrela como Nicole Kidman sentada em uma privada? Ou faria
um galã como Tom Cruise contracenar com mulheres invariavelmente mais altas do que ele?
Poucos.
Qual diretor de cinema é capaz
de mover a câmera com o steadycam (aparelho introduzido por
ele em "Barry Lindon", em 1975)
com tanta segurança, desenvoltura e discrição? Nenhum.
E quem colocaria o Casal 20 de
Hollywood (Kidman e Cruise,
justamente) numa situação delicada como esta: Kidman (Alice
Harford), casada com Cruise (Bill
Harford) há nove anos, fuma um
baseado e abre o jogo sobre a paixão fulminante que sente por um
homem que só viu uma vez? E
Bill, até ali visto como um médico
exemplar, simpático, íntegro
-isto é, superficial como um
príncipe de conto de fadas-, lança-se, meio desarvorado, em uma
estranha aventura noturna.
Não sabemos em que dimensão
estamos. A trama é uma espécie
de "Alice no País das Maravilhas"
vivido a dois. Um sonho que pode
ser real. Uma realidade que pode
não passar de pesadelo. Ambos.
O certo é que nessa dimensão
todos nos reconhecemos como
seres mascarados; vivemos -e
mostramos aos outros, inclusive
aos mais próximos- aquilo que
não somos intimamente (embora
nada leve a crer que "aquilo que
não somos intimamente" seja
mais verdadeiro ou relevante do
que a parte de nós que se deixa ver
publicamente).
Voltando à questão lançada pelo espectador: de fato, não dá para
saber se vamos querer ver o filme
pela terceira vez.
Mas será preciso vê-lo pelo menos pela segunda vez, pois assim o
exige o gênio de Kubrick. A maneira como fecha o quadro em
seus personagens, como cada
momento se faz relevante, vital,
torna obrigatória a admiração (e,
portanto, a revisão).
Mas os filmes que assistimos infatigavelmente, três, quatro, dez
vezes, são filmes que amamos, e
talvez esteja aí o problema do cinema de Kubrick. Ele se deixa
muito mais admirar do que amar.
Mesmo quem não gostou de seu
"Lolita", por exemplo, reconhecerá instantaneamente seu gênio ao
ver o patético "remake" perpetrado há pouco por Adrian Lyne. Ok,
a comparação, no caso, é covarde:
em Kubrick não há um fotograma
sequer que se possa chamar de
vulgar. Em Lyne, tudo é vulgar: a
luz, o som, os enquadramentos,
os atores (nem Jeremy Irons resiste ao massacre).
Em "De Olhos Bem Fechados"
há inúmeras sequências inesquecíveis: a garota de programa que
quase morre de overdose; a moça
que declara sua paixão pelo médico junto ao corpo do pai, recém-morto; a visita de Tom Cruise a
uma loja de fantasias; a bacanal
dos mascarados; um homem que
segue Cruise pela rua etc.
Tudo isso poderia sofrer de
uma sobrecarga onírica (pecado
de "After Hours", de Martin Scorsese, que está muito longe de ser
um incompetente). Mas não. Tudo nos parece perfeitamente real.
Real como um sonho é real. Essa a
magia incontestável do filme.
Não é só: um simples diálogo, o
mais banal do mundo, entre marido e mulher, ganha realce pelas
mãos de Kubrick. É fácil compreender o adjetivo "perfeccionista", lugar-comum inescapável
a respeito de seu cinema. Kubrick
é profundo, por vezes frio, como
se contemplasse o espetáculo do
humano e suas precariedades à
distância. Não do alto, como se
não estivesse implicado nele, mas
a uma distância que não deixa dúvidas quanto a seu desgosto: é admirável.
Mas é como se isso roubasse do
cinema essa ponta de vulgaridade, de espetáculo bastardo, que
está em suas origens e que habita
todo homem, tanto quanto as
fantasias que vivem os personagens de "De Olhos Bem Fechados".
Um filme admirável e enigmático, cujo gênio, de alguma forma,
nos soterra e afasta dele. Filme
que não se pode deixar de rever.
Mas que, como quase todos os
outros de Kubrick, seja pelo que
tem de aflitivo ou de extremamente cerebral, não se deixa
amar.
Avaliação:
Texto Anterior: Talento demais, cinema de menos Próximo Texto: Stanley Kubrick deixa testamento inacabado Índice
|