São Paulo, Quinta-feira, 02 de Setembro de 1999
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Stanley Kubrick deixa testamento inacabado


Morto quatro dias depois de exibir a produtores a primeira cópia montada do filme, diretor não teve tempo de retocar com perfeição sua última obra



AMIR LABAKI
enviado especial a Veneza

Veneza 99 também se dividiu ontem frente a "De Olhos Bem Fechados", exibido fora de concurso como filme de abertura. Aplausos poucos e tímidos marcaram as projeções para a imprensa, repetindo-se a cisão crítica quando da estréia americana.
Há duas razões básicas para a decepção frente a "De Olhos Bem Fechados". A primeira deve-se creditar ao destino. Kubrick morreu quatro dias depois de exibir aos produtores a primeira cópia montada do filme. As "gorduras" e quebras de ritmo são por demais evidentes.
Kubrick mexia em suas obras até a exaustão, ouvindo muito a voz de seu público, profissional ou não. Chegou a cortar "O Iluminado" já após o lançamento comercial nos Estados Unidos. Não teve tempo para tanto com "De Olhos Bem Fechados".
Seu ensaio fílmico sobre o amor neste fim de século chega até nós, assim, em estado bruto. "De Olhos Bem Fechados" é um testamento inacabado. Tivesse sido assim reconhecido na campanha de estréia, mais equilibrada teria sido sua discussão.
Há que se reconhecer, por outro lado, o problema crucial do projeto: o roteiro. "De Olhos Bem Fechados" é de longe a adaptação literária mais fiel ao texto original filmada por Kubrick. Quebrou-se, assim, uma tradição.
O Kubrick maduro sempre gostou de partir de narrativas literárias e jornalísticas para a construção de seus filmes.
Transformava-as tremendamente no processo de roteirização, procurando extrair delas sua essência e recriá-la em linguagem cinematográfica.
O objetivo era ser fiel ao espírito e não à letra. Os maiores exemplos são "Lolita", bastante distinto do romance de Nabokov, e "2001 - Uma Odisséia no Espaço", mais catalisado por Arthur Clarke do que adaptado de seu conto.
Muito distinto resultou o roteiro adaptado da "Traumnovelle", de Arthur Schnitzler. Trabalhando com o roteirista Frederick Raphael, Kubrick procurou seguir o mais possível a estrutura original.
Tudo se passa com se a Viena do início do século e a Nova York contemporânea fossem absolutamente equivalentes. Convenções da vida pública e regras do convívio familiar surgem quase inalterados. Diálogos se repetem.
Há uma impressionante sintonia entre a divisão das sequências na novela e no filme. Seguem-se, de maneira geral, a festa e os flertes, o confronto do casal, a visita ao médico, o programa abortado com a prostituta, o reencontro no bar com o amigo pianista, o atribulado aluguel da fantasia, a ida à orgia, a volta para casa e a repetição culpada do circuito anterior.
A grande mudança dá-se na conclusão. Schnitzler empresta à novela uma formato circular, abrindo-a e encerrando-a com o jovem casal em torno do leito da bela filha. Nada explica sobre a sucessão de incidentes oníricos.
Raphael e Kubrick optaram pelo didatismo. Iniciam o filme com a forte imagem de Alice (Kidman) vestindo-se para a festa e concluem-no com uma conversa tensa, mais apaixonada, do casal. Pouco antes, forçam o "bon-vivant" Victor Ziegler (Sydney Pollack) a explicar tudo para o doutor Bill (Cruise). O mistério se esvai. Nada menos kubrickiano.


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