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MARCELO COELHO
Mao e o sorriso do cozinheiro
É conhecida a frase de um
dirigente chinês que se recusava a dar sua opinião sobre a
Revolução Francesa: passados
dois séculos, não havia "ainda"
uma distância histórica suficiente
para julgar o acontecido.
Os séculos parecem correr rapidamente, contudo, para quem visita a exposição "China: A Arte
Imperial, a Arte do Cotidiano, a
Arte Contemporânea", em cartaz
na Faap até dia 3 de novembro.
Em poucas salas, passamos da cerâmica rústica do neolítico aos
elaboradíssimos e um tanto aflitivos dragõezinhos de cauda retorcida do século 17.
Cadeiras de laca, travesseiros de
porcelana, paisagens em miniatura, tigelinhas, escrínios, incrustações -tudo isso me dá uma
sensação de desconforto, de falta
de espaço, de hipertrofia ornamental. Mas as salas dedicadas à
arte do período imperial, com peças trazidas do Museu Guimet, de
Paris, felizmente evitaram o acúmulo de informações. Um número relativamente pequeno de
obras parece ser suficiente para
nos dar uma idéia do estilo de cada período.
Tudo indica que tenha havido
até mesmo uma época "clean" na
cerâmica chinesa, mais ou menos
por volta do século 9º. O gosto
moderno naturalmente se inclina
para esse período ou mesmo para
as relíquias de uma arte mais arcaica, de que falarei adiante.
O visitante da mostra também
fica conhecendo alguns exemplos
(ruins) de arte contemporânea e
uma quantidade enorme de peças
de artesanato, objetos religiosos e
curiosidades, desde carapaças de
tartaruga utilizadas na medicina
tradicional até chapéus e pincenês de mandarim.
É nessa seção, intitulada "Arte
do Cotidiano", que reencontramos todo o exagero museológico,
o empenho cumulativo indiscriminado que as salas sobre arte
imperial tinham conseguido evitar.
Não deixa de ser um paradoxo,
pois, nas peças utilitárias, no artesanato em palha, nas cestas de
bambu, nas marmitas de madeira e nos extraordinários exemplos
da arte da embalagem apresentados na exposição, o que se vê são
obras-primas de despojamento
formal, de uso conciso e sóbrio do
espaço.
O auge do empilhamento, do
colecionismo e do bricabraque se
encontra, todavia, na sala dedicada ao presidente Mao. Num espaço pequeno, tudo o que já foi
feito -cartaz, distintivo, moeda
comemorativa, livro vermelho e
estatueta em homenagem ao
Grande Timoneiro- compete
para atrair nossa atenção.
Vendo essas peças, é fácil notar
que o culto à personalidade de
Mao, exacerbado durante a década de 60, era um fenômeno religioso, tanto quanto político. Mas
esse comentário é um pouco banal.
Algumas estatuetas do período
são bonitas. Pecinhas de porcelana que retratam camponeses armados de pistola, canecas que celebram a inauguração de uma
ferrovia ou um novo programa de
construção civil, algumas imagens votivas do próprio Mao
-tudo isso tem a graça própria
das feirinhas de antiguidade: suas
cores apelativas e suas formas sedutoras ganham charme com a
obsolescência das mensagens a
que serviam.
Comparando essas peças com o
artesanato camponês mostrado
nas outras salas, tão contido e rigoroso, fiquei pensando se o monte de quinquilharias maoístas
não tinha outro sentido, além do
político e do religioso. Esse gênero
de produtos representa, acima de
tudo, o advento da produção industrial de massa. A possibilidade
de ter brinquedos de louça e figuras "perfeitas" de plástico a preço
de banana é uma conquista tão
irresistível para quem vive no
mundo artesanal que, sem dúvida, o conteúdo "ideológico" dessas imagens não é o mais importante. Por isso mesmo é que essas
imagens de Mao parecem tanto
os santinhos do culto católico ou
os suvenires de alguma cidade turística.
Houve épocas e sociedades em
que a religião dominava todas as
outras esferas da atividade humana -a política, os costumes, a
arte, a alimentação etc. É provável que esse papel tenha sido ocupado, a partir de 1950, pela mentalidade e pelos processos típicos
da cultura e do consumo de massas. Religião, política, vida afetiva, tudo se subordina à mesma
lógica.
Não quero dar um tom muito
pessimista a essa avaliação. Ninguém gostaria de voltar ao período, nada poluído visualmente, da
dinastia Han posterior (25 d.C.-220 d.C.). Na mostra da Faap, há
uma incrível estatueta dessa época, representando a cabeça de um
cozinheiro.
Podemos quase adivinhar a
pressão dos dedos do artista sobre
o barro, criando com alguns movimentos rápidos o sorriso, as pálpebras em semicírculo, as maçãs
do rosto do personagem. Não dá
para saber se se trata de alguma
figura cômica tradicional, se pertence a algum conjunto de esculturas funerárias ou a qualquer
outro tipo de contexto histórico.
Tomado isoladamente, o sorriso do cozinheiro tem algo de irônico, como se fosse também o espectador distante de uma longa
trajetória de desenvolvimento
humano. Lembra o célebre sorriso
de algumas estátuas gregas, quem
sabe o da Mona Lisa ou o daquele
anjo da catedral de Chartres segurando um relógio de sol, de que
fala Rilke num poema.
"Anjo a sorrir", diz ele, "com
uma boca feita de cem bocas:/ não
vês então como as nossas horas/
deslizam do quadrante solar que
ostentas?" Mais adiante, o poeta
pergunta: "Que sabes, anjo de pedra, do nosso ser?/ e não seguras,
com rosto ainda mais aventurado,/ talvez, o quadrante através
da noite?"
É o sorriso, portanto, de quem
paira acima de todo conflito humano. Provavelmente é para preservar esse sorriso que existem os
museus. No da Faap, a entrada é
grátis, e a visita não ocupa tempo
demais.
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