São Paulo, quarta-feira, 02 de outubro de 2002

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MARCELO COELHO

Mao e o sorriso do cozinheiro

É conhecida a frase de um dirigente chinês que se recusava a dar sua opinião sobre a Revolução Francesa: passados dois séculos, não havia "ainda" uma distância histórica suficiente para julgar o acontecido.
Os séculos parecem correr rapidamente, contudo, para quem visita a exposição "China: A Arte Imperial, a Arte do Cotidiano, a Arte Contemporânea", em cartaz na Faap até dia 3 de novembro. Em poucas salas, passamos da cerâmica rústica do neolítico aos elaboradíssimos e um tanto aflitivos dragõezinhos de cauda retorcida do século 17.
Cadeiras de laca, travesseiros de porcelana, paisagens em miniatura, tigelinhas, escrínios, incrustações -tudo isso me dá uma sensação de desconforto, de falta de espaço, de hipertrofia ornamental. Mas as salas dedicadas à arte do período imperial, com peças trazidas do Museu Guimet, de Paris, felizmente evitaram o acúmulo de informações. Um número relativamente pequeno de obras parece ser suficiente para nos dar uma idéia do estilo de cada período.
Tudo indica que tenha havido até mesmo uma época "clean" na cerâmica chinesa, mais ou menos por volta do século 9º. O gosto moderno naturalmente se inclina para esse período ou mesmo para as relíquias de uma arte mais arcaica, de que falarei adiante.
O visitante da mostra também fica conhecendo alguns exemplos (ruins) de arte contemporânea e uma quantidade enorme de peças de artesanato, objetos religiosos e curiosidades, desde carapaças de tartaruga utilizadas na medicina tradicional até chapéus e pincenês de mandarim.
É nessa seção, intitulada "Arte do Cotidiano", que reencontramos todo o exagero museológico, o empenho cumulativo indiscriminado que as salas sobre arte imperial tinham conseguido evitar.
Não deixa de ser um paradoxo, pois, nas peças utilitárias, no artesanato em palha, nas cestas de bambu, nas marmitas de madeira e nos extraordinários exemplos da arte da embalagem apresentados na exposição, o que se vê são obras-primas de despojamento formal, de uso conciso e sóbrio do espaço.
O auge do empilhamento, do colecionismo e do bricabraque se encontra, todavia, na sala dedicada ao presidente Mao. Num espaço pequeno, tudo o que já foi feito -cartaz, distintivo, moeda comemorativa, livro vermelho e estatueta em homenagem ao Grande Timoneiro- compete para atrair nossa atenção.
Vendo essas peças, é fácil notar que o culto à personalidade de Mao, exacerbado durante a década de 60, era um fenômeno religioso, tanto quanto político. Mas esse comentário é um pouco banal.
Algumas estatuetas do período são bonitas. Pecinhas de porcelana que retratam camponeses armados de pistola, canecas que celebram a inauguração de uma ferrovia ou um novo programa de construção civil, algumas imagens votivas do próprio Mao -tudo isso tem a graça própria das feirinhas de antiguidade: suas cores apelativas e suas formas sedutoras ganham charme com a obsolescência das mensagens a que serviam.
Comparando essas peças com o artesanato camponês mostrado nas outras salas, tão contido e rigoroso, fiquei pensando se o monte de quinquilharias maoístas não tinha outro sentido, além do político e do religioso. Esse gênero de produtos representa, acima de tudo, o advento da produção industrial de massa. A possibilidade de ter brinquedos de louça e figuras "perfeitas" de plástico a preço de banana é uma conquista tão irresistível para quem vive no mundo artesanal que, sem dúvida, o conteúdo "ideológico" dessas imagens não é o mais importante. Por isso mesmo é que essas imagens de Mao parecem tanto os santinhos do culto católico ou os suvenires de alguma cidade turística.
Houve épocas e sociedades em que a religião dominava todas as outras esferas da atividade humana -a política, os costumes, a arte, a alimentação etc. É provável que esse papel tenha sido ocupado, a partir de 1950, pela mentalidade e pelos processos típicos da cultura e do consumo de massas. Religião, política, vida afetiva, tudo se subordina à mesma lógica.
Não quero dar um tom muito pessimista a essa avaliação. Ninguém gostaria de voltar ao período, nada poluído visualmente, da dinastia Han posterior (25 d.C.-220 d.C.). Na mostra da Faap, há uma incrível estatueta dessa época, representando a cabeça de um cozinheiro.
Podemos quase adivinhar a pressão dos dedos do artista sobre o barro, criando com alguns movimentos rápidos o sorriso, as pálpebras em semicírculo, as maçãs do rosto do personagem. Não dá para saber se se trata de alguma figura cômica tradicional, se pertence a algum conjunto de esculturas funerárias ou a qualquer outro tipo de contexto histórico.
Tomado isoladamente, o sorriso do cozinheiro tem algo de irônico, como se fosse também o espectador distante de uma longa trajetória de desenvolvimento humano. Lembra o célebre sorriso de algumas estátuas gregas, quem sabe o da Mona Lisa ou o daquele anjo da catedral de Chartres segurando um relógio de sol, de que fala Rilke num poema.
"Anjo a sorrir", diz ele, "com uma boca feita de cem bocas:/ não vês então como as nossas horas/ deslizam do quadrante solar que ostentas?" Mais adiante, o poeta pergunta: "Que sabes, anjo de pedra, do nosso ser?/ e não seguras, com rosto ainda mais aventurado,/ talvez, o quadrante através da noite?"
É o sorriso, portanto, de quem paira acima de todo conflito humano. Provavelmente é para preservar esse sorriso que existem os museus. No da Faap, a entrada é grátis, e a visita não ocupa tempo demais.



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