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São Paulo, quinta-feira, 02 de outubro de 2003

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GASTRONOMIA

A sangue quente

NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA

Aviso aos navegantes desta minha tardia viagem. Matar não é difícil.
Estavam todas as galinhas no terreiro numa hora em que ficam correndo de lá para cá, e vi dois frangos serelepes, bem no jeito, como as vítimas mais interessantes. Dizem que é possível reconhecer a idade de uma ave pelo bico e pela ponta do osso do peito, que são flexíveis nas jovens e rígidos nas velhas. Imagine se seria preciso. O que há de diferença numa franga e numa galinha velha... Depois de mortas, esquartejadas no supermercado, aí, sim.
Este frango era inteligente, do jeito que eu gosto, marrom, só umas penas brancas. Correu, lançando-se para a frente num ímpeto, fingido, sabem muito bem quando lhes chega a hora e até se divertem um pouco com a idéia.
Traidora, joguei milho bem perto de mim, ele não resistiu, parou a correria e veio. Agarrei-o desajeitada por uma asa, já muito decidida para o que desse e viesse.
O americano em lua-de-mel no sítio havia pedido, mesmo sem saber bem o que era, galinha de cabidela. Tivemos vontade de enganá-lo, dizer que não era tempo, esquece, que as cabidelas só dão no tempo das pitangas.
Mas foi melhor assim. Pisei nos pés, podia ter pisado com mais carinho, ajeitado os pés com mais cuidado, mas cabiam poucos gestos. O caseiro, Alexandre, doce e suave matador do dia-a-dia, entregou-me a faca, fez-me raspar a penugem. E rasgar o pescoço do frangote. Não cortei o bastante, saiu sangue, mas pouco, ele me obrigou a cortar mais fundo. O sangue fresquinho, pouco.
-Alexandre, agora largo e ele fica pulando de lá para cá, meio morto?
-Não, já morreu, pode deixar.
O resto de sangue pingava no banco rústico. Ah, que chatice, com certeza vai entranhar na madeira, fiel testigo de mi traición, nunca mais posso esquecer. O frango caiu no chão, sem estertores. Que impressionante, aquele bicho tão esperto há um minuto tinha uma vidinha de nada, um sopro, um fio, uma piscada.
No fogão a lenha, ao ar livre fervia a água. Segurei a ave pelas pernas, mergulhei na fervura por segundos apenas. Com as mãos pegando fogo do calor, arrancam-se as penas, facílimo, soltam-se sozinhas, a pele como a de um pulso, finíssima, esgarçando. Pronto, já temos nas mãos um frango pelado, como o da viúva Chaves, que também gostava de aves. Nenhuma lembrança de vida, a coisa mais morta que já vi.
Chamuscá-lo no fogo, a fumaça contra o vento entrando nos olhos e ardendo. Não havia tristeza no coração de ninguém, nem de quem matou nem de quem assistiu. Pensei que o mundo ficaria como o Gólgota, nós ali debruçados sobre o morto, mas a vida continuava igual numa radiosidade intensa e parada, a natureza explodindo verde, verde, e tudo acontecendo no ramerrão de sempre. Impávidos diante do sangue.
O galinheiro, então, tem um desdém enorme pela morte, vieram para perto bicar alguma coisas e, pensavam, antes ele do que eu. Ah, ia me esquecendo que é preciso uma colher de vinagre no sangue, mexer, mexer, para não coagular.
Depois, cortar as partes já não foi tão fácil, Jack the Ripper só virá com o tempo. Acertar exatamente as juntas, a faca muito boa, descobrir coração, fígado, moela, a moela desta vez sem faisquinhas de cristal, só com terra, frango comedor de terra este.
Restou no fim uma ave magrela e sua bacia de sangue para cabidela, que não dá no tempo das pitangas. Resolvi fazê-lo acompanhado por pequenos mangaritos que vingaram no sítio, batatinhas sem grandes atrativos a não ser para quem os comeu na infância. Mas não eram de todo maus, passei de leve no melado.
Ainda tenho vontade de mudar para aquele sítio. Temei, penas, temei! Sozinha, sem relações humanas para administrar, força no coração para matar sem medo e sem perder a ternura, dia após dia, as estações passando, o mar azul, o cheiro de lenha, a chuva criadeira, o silêncio, as pedras das ruas, a lua que se bota no porto sobre o cavalo branco, mas o mais importante é a sozinhez de velha louca, a absorção diária e ínfima da escuridão até alcançar a indiferença feroz das galinhas para com a vida e para com a morte, incautas, imortais.

ninahort@uol.com.br


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