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GASTRONOMIA
A sangue quente
NINA HORTA
COLUNISTA DA FOLHA
Aviso aos navegantes desta
minha tardia viagem. Matar
não é difícil.
Estavam todas as galinhas no
terreiro numa hora em que ficam
correndo de lá para cá, e vi dois
frangos serelepes, bem no jeito,
como as vítimas mais interessantes. Dizem que é possível reconhecer a idade de uma ave pelo bico e pela ponta do osso do peito,
que são flexíveis nas jovens e rígidos nas velhas. Imagine se seria
preciso. O que há de diferença numa franga e numa galinha velha...
Depois de mortas, esquartejadas
no supermercado, aí, sim.
Este frango era inteligente, do
jeito que eu gosto, marrom, só
umas penas brancas. Correu, lançando-se para a frente num ímpeto, fingido, sabem muito bem
quando lhes chega a hora e até se
divertem um pouco com a idéia.
Traidora, joguei milho bem perto de mim, ele não resistiu, parou
a correria e veio. Agarrei-o desajeitada por uma asa, já muito decidida para o que desse e viesse.
O americano em lua-de-mel no
sítio havia pedido, mesmo sem
saber bem o que era, galinha de
cabidela. Tivemos vontade de enganá-lo, dizer que não era tempo,
esquece, que as cabidelas só dão
no tempo das pitangas.
Mas foi melhor assim. Pisei nos
pés, podia ter pisado com mais
carinho, ajeitado os pés com mais
cuidado, mas cabiam poucos gestos. O caseiro, Alexandre, doce e
suave matador do dia-a-dia, entregou-me a faca, fez-me raspar a
penugem. E rasgar o pescoço do
frangote. Não cortei o bastante,
saiu sangue, mas pouco, ele me
obrigou a cortar mais fundo. O
sangue fresquinho, pouco.
-Alexandre, agora largo e ele
fica pulando de lá para cá, meio
morto?
-Não, já morreu, pode deixar.
O resto de sangue pingava no
banco rústico. Ah, que chatice,
com certeza vai entranhar na madeira, fiel testigo de mi traición,
nunca mais posso esquecer. O
frango caiu no chão, sem estertores. Que impressionante, aquele
bicho tão esperto há um minuto
tinha uma vidinha de nada, um
sopro, um fio, uma piscada.
No fogão a lenha, ao ar livre fervia a água. Segurei a ave pelas pernas, mergulhei na fervura por segundos apenas. Com as mãos pegando fogo do calor, arrancam-se
as penas, facílimo, soltam-se sozinhas, a pele como a de um pulso,
finíssima, esgarçando. Pronto, já
temos nas mãos um frango pelado, como o da viúva Chaves, que
também gostava de aves. Nenhuma lembrança de vida, a coisa
mais morta que já vi.
Chamuscá-lo no fogo, a fumaça
contra o vento entrando nos
olhos e ardendo. Não havia tristeza no coração de ninguém, nem
de quem matou nem de quem assistiu. Pensei que o mundo ficaria
como o Gólgota, nós ali debruçados sobre o morto, mas a vida
continuava igual numa radiosidade intensa e parada, a natureza explodindo verde, verde, e tudo
acontecendo no ramerrão de
sempre. Impávidos diante do sangue.
O galinheiro, então, tem um
desdém enorme pela morte, vieram para perto bicar alguma coisas e, pensavam, antes ele do que
eu. Ah, ia me esquecendo que é
preciso uma colher de vinagre no
sangue, mexer, mexer, para não
coagular.
Depois, cortar as partes já não
foi tão fácil, Jack the Ripper só virá
com o tempo. Acertar exatamente
as juntas, a faca muito boa, descobrir coração, fígado, moela, a
moela desta vez sem faisquinhas
de cristal, só com terra, frango comedor de terra este.
Restou no fim uma ave magrela
e sua bacia de sangue para cabidela, que não dá no tempo das pitangas. Resolvi fazê-lo acompanhado por pequenos mangaritos
que vingaram no sítio, batatinhas
sem grandes atrativos a não ser
para quem os comeu na infância.
Mas não eram de todo maus, passei de leve no melado.
Ainda tenho vontade de mudar
para aquele sítio. Temei, penas,
temei! Sozinha, sem relações humanas para administrar, força no
coração para matar sem medo e
sem perder a ternura, dia após
dia, as estações passando, o mar
azul, o cheiro de lenha, a chuva
criadeira, o silêncio, as pedras das
ruas, a lua que se bota no porto
sobre o cavalo branco, mas o mais
importante é a sozinhez de velha
louca, a absorção diária e ínfima
da escuridão até alcançar a indiferença feroz das galinhas para com
a vida e para com a morte, incautas, imortais.
ninahort@uol.com.br
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