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"TRÊS CONTOS"
Histórias testemunham impasses da criação para Flaubert
MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA
Estes "Três Contos" publicados em 1877 costumam ser
considerados pela crítica o testamento literário de seu autor, Gustave Flaubert (1821-1880).
Sua gênese é interessante. Vítima de um bloqueio criativo enquanto escrevia seu monumental
"Bouvard e Pécuchet", Flaubert
decidiu retomar o velho projeto
de escrever sobre o santo parricida são Julião Hospitaleiro. O autor dedicou-se à tarefa com afinco. Ficava feliz quando conseguia
escrever "(em três dias!) meia página de esboços".
À lenda de são Julião, juntou a
história de uma velha e devota
criada, "Um Coração Simples",
que lhe deu idêntico trabalho. "Já
levo três dias em desvario", afirmou. Flaubert acrescentou a esses
contos a sina de são João Batista,
vista pela perspectiva de seus algozes, Herodes Antipas e Herodíade.
O escritor acreditava que os três
contos deviam ser vistos numa
unidade, como um tríptico. Foram muito bem recebidos pela
crítica da época, que lhes destacou
a "elevação moral" e a "bondade
inconsciente". O próprio Flaubert
pode ter alimentado essa apreciação piedosa quando se referiu a
"Um Coração Simples" como
"uma coisinha que as mães poderão deixar as filhas ler".
Embora a questão da fé esteja
presente nos três relatos, nada é
mais ocioso do que se valer da
moralidade para abonar-lhes a
importância. O fato é que é difícil,
malgrado as advertências em contrário, não associar os três contos
a momentos distintos da carreira
de Flaubert: "Um Coração Simples" a "Madame Bovary", "A Legenda de São João Hospitaleiro"
às "Tentações de Santo Antão" e
"Herodíade" a "Salammbô".
A última aproximação é a mais
problemática, pois até mesmo o
autor, percebendo a semelhança
temática, procurou fugir dela.
Oprimia-o o fracasso desse seu
romance histórico, de modo que
ele, no conto, diminuiu a ornamentação descritiva, imprimiu o
rigor da ação clássica e até fez alusões à política de seu tempo.
Já em "A Legenda de...", ele está
de volta ao terreno da hagiografia,
que subverte tão bem. Como no
caso de Antão, a fé do édipo Julião
nos afigura menos convincente
do que os terrores e as tentações
que o assolam. Impressionam-nos mais a tendência sanguinária
deste último, o apetite por hecatombes de animais e a fúria que o
faz matar os pais por engano.
Sua expiação é protocolar e parece que apenas a interferência final de Cristo, numa impressionante página de revelação divina,
capaz de comover o mais empedernido agnóstico, é que o salva e
o alça à santidade.
O final também constitui um
"tour de force" em "Um Coração
Simples", cujo entrecho aparentemente despretensioso é dos mais
ricos da história da ficção. Em
"Madame Bovary", temos o retrato de uma senhora de província,
romântica e insatisfeita com o casamento insípido, enquanto "Um
Coração Simples" descreve com
análoga impessoalidade a trajetória de uma existência "menor". E
que vida menor poderia haver do
que a da criada Félicité, que anula
sua identidade para servir a patroa, por assim dizer, de corpo e
alma?
Vítima inconsciente da luta de
classes, ela chega a ter como suas
alegrias e dores alheias. De seu,
guarda apenas um papagaio, que
lhe recorda o sobrinho morto nas
Américas. A presença dessa ave,
confundida com o Espírito Santo,
transforma o trecho do delírio de
Félicité, de outra forma construído em perfeito paralelismo realista, numa cena precursora do surrealismo do século 20.
Três Contos
Autor: Gustave Flaubert
Tradutores: Milton Hatoum e Samuel
Titan Jr.
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (150 págs.)
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