São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2004

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"TRÊS CONTOS"

Histórias testemunham impasses da criação para Flaubert

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Estes "Três Contos" publicados em 1877 costumam ser considerados pela crítica o testamento literário de seu autor, Gustave Flaubert (1821-1880).
Sua gênese é interessante. Vítima de um bloqueio criativo enquanto escrevia seu monumental "Bouvard e Pécuchet", Flaubert decidiu retomar o velho projeto de escrever sobre o santo parricida são Julião Hospitaleiro. O autor dedicou-se à tarefa com afinco. Ficava feliz quando conseguia escrever "(em três dias!) meia página de esboços".
À lenda de são Julião, juntou a história de uma velha e devota criada, "Um Coração Simples", que lhe deu idêntico trabalho. "Já levo três dias em desvario", afirmou. Flaubert acrescentou a esses contos a sina de são João Batista, vista pela perspectiva de seus algozes, Herodes Antipas e Herodíade.
O escritor acreditava que os três contos deviam ser vistos numa unidade, como um tríptico. Foram muito bem recebidos pela crítica da época, que lhes destacou a "elevação moral" e a "bondade inconsciente". O próprio Flaubert pode ter alimentado essa apreciação piedosa quando se referiu a "Um Coração Simples" como "uma coisinha que as mães poderão deixar as filhas ler".
Embora a questão da fé esteja presente nos três relatos, nada é mais ocioso do que se valer da moralidade para abonar-lhes a importância. O fato é que é difícil, malgrado as advertências em contrário, não associar os três contos a momentos distintos da carreira de Flaubert: "Um Coração Simples" a "Madame Bovary", "A Legenda de São João Hospitaleiro" às "Tentações de Santo Antão" e "Herodíade" a "Salammbô".
A última aproximação é a mais problemática, pois até mesmo o autor, percebendo a semelhança temática, procurou fugir dela. Oprimia-o o fracasso desse seu romance histórico, de modo que ele, no conto, diminuiu a ornamentação descritiva, imprimiu o rigor da ação clássica e até fez alusões à política de seu tempo.
Já em "A Legenda de...", ele está de volta ao terreno da hagiografia, que subverte tão bem. Como no caso de Antão, a fé do édipo Julião nos afigura menos convincente do que os terrores e as tentações que o assolam. Impressionam-nos mais a tendência sanguinária deste último, o apetite por hecatombes de animais e a fúria que o faz matar os pais por engano.
Sua expiação é protocolar e parece que apenas a interferência final de Cristo, numa impressionante página de revelação divina, capaz de comover o mais empedernido agnóstico, é que o salva e o alça à santidade.
O final também constitui um "tour de force" em "Um Coração Simples", cujo entrecho aparentemente despretensioso é dos mais ricos da história da ficção. Em "Madame Bovary", temos o retrato de uma senhora de província, romântica e insatisfeita com o casamento insípido, enquanto "Um Coração Simples" descreve com análoga impessoalidade a trajetória de uma existência "menor". E que vida menor poderia haver do que a da criada Félicité, que anula sua identidade para servir a patroa, por assim dizer, de corpo e alma?
Vítima inconsciente da luta de classes, ela chega a ter como suas alegrias e dores alheias. De seu, guarda apenas um papagaio, que lhe recorda o sobrinho morto nas Américas. A presença dessa ave, confundida com o Espírito Santo, transforma o trecho do delírio de Félicité, de outra forma construído em perfeito paralelismo realista, numa cena precursora do surrealismo do século 20.


Três Contos
    
Autor: Gustave Flaubert
Tradutores: Milton Hatoum e Samuel Titan Jr.
Editora: Cosac Naify
Quanto: R$ 39 (150 págs.)



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