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MEMÓRIA
Uma viagem do
tango ao
candomblé
ANTONIO RISÉRIO
especial para a Folha
Malandro, tocador de pandeiro e
berimbau, capoeirista, íntimo das
rampas e das rameiras da cidade,
alto escalão do candomblé, amigo-irmão de Jorge Amado e Dorival Caymmi.
Diante de um perfil desses, a pergunta só pode ser uma: mas quem
era esse baiano? E a resposta: era
um argentino. Um argentino nascido em 1911, em Lanus, subúrbio
industrial de Buenos Aires. Um argentino chamado Hector Julio Páride Bernabó. Ou melhor, Carybé.
Não é comum, mas a Bahia tem
sido premiada com esse tipo de
conversão antropológica. E podemos aproximar os casos de Carybé
e do antropólogo Pierre Verger.
Deixando a França sob o signo
de Gauguin, Verger cruzou terras
e mais terras, do Mali ao Peru, e
assentou-se na Bahia, onde se iniciou no candomblé. Ele e Carybé
experimentaram em profundidade o sempre estranho e denso fenômeno da conversão cultural.
Como Verger, Carybé chegou à
Bahia depois da leitura do "Jubiabá", de Jorge Amado. Veio conferir a realidade recriada pelo romancista baiano. Decepcionou-se,
aliás, ao conhecer Jorge pessoalmente (esperava encontrar um
mulato forte, gargalhante, e deu de
cara com um sujeito franzino).
Mas a cidade o enfeitiçou. Mais
tarde, quando decidiu escolher um
lugar para viver -e pintar-, o
"andejo sul-americano" (como
Patrícia Galvão, Pagu, o chamou)
ficou em dúvida: Cuzco, no altiplano andino, ou a Bahia, local
que, como dizia, parecia ter sido
encomendado por artistas.
Escolheu a Bahia -"alegre,
cheia de sol e de luz". Para cá trouxe a mulher Nancy, também argentina, e aqui viu nascer e crescer
os filhos, o artista plástico Ramiro
e a bonita Solange, bióloga.
Chegou trazendo uma carta de
apresentação assinada por Rubem
Braga, cujo destinatário era o mestre Anísio Teixeira, então no comando da política educacional do
Estado. E Carybé foi então contratado para "desenhar a cidade".
Anísio acertou em cheio. Carybé
era, sobretudo, desenhista. Claro,
tratava-se de um artista múltiplo,
exercitando-se com tranquilidade
em inúmeras técnicas -e até mesmo envolvendo-se com o cinema,
como no caso dos 1.300 esboços de
cenas que desenhou para "O Cangaceiro", de Lima Barreto.
Seu muralismo, que vem de Picasso e Rivera, impressiona, seja
pela beleza quase grave do Mural
dos Orixás (Salvador), seja pela
profusão de detalhes dos murais
do aeroporto John Kennedy (Nova
York). Mas na minha opinião, a
sua técnica-rainha é o nanquim.
Vejam o livro "As Sete Portas da
Bahia", reunindo desenhos da década de 50. É um misto perfeito de
economia e riqueza -o traço elegante, caligráfico, produzindo figuras nítidas, em composições
preferencialmente planas.
E como as suas personagens
eram colhidas em meio à população negro-mestiça da Bahia, Carybé não deixava de realizar um projeto nascido do modernismo de 22
-mais precisamente, no âmbito
do movimento antropofágico comandado por Oswald de Andrade.
Sim: os antropófagos pensaram
em realizar estudos sobre o andar
do negro brasileiro, segundo nos
conta Raul Bopp. Seriam estudos
pioneiros de semiótica gestual.
Mas há outro aspecto que gostaria de negritar. É a dimensão do fazer. Carybé foi um artífice. Ao meter a mão na massa (literalmente,
em seus trabalhos com barro),
Carybé era um peão que não brincava em serviço. Ele empunhava a
goiva do escultor com a mesma
disposição com que o vi, certa vez,
carregar telhas para uma obra
num terreiro de candomblé.
Por fim, digo que não foi por
acaso que assinalei a insignificância da paisagem em seus desenhos.
Esse desenhista elegante, ou esse
pandeirista, que mereceu de Jorge
Amado a definição de "baiano
exemplar", teve a sua atenção totalmente concentrada nas pessoas.
"Adoro gente", costumava repetir. E era verdade. Foi por aí que ele
conseguiu recriar em nanquim a
vida da gente baiana. E com tal
precisão que Rubem Braga não resistiu, dizendo: "Carybé não se
inspira na Bahia, parece que a Bahia é que se inspira em Carybé".
Antonio Risério é poeta e antropólogo, autor
de "Caymmi: Uma Utopia de Lugar" (Perspectiva) e "Textos e Tribos" (Imago), entre outros
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