São Paulo, quinta-feira, 02 de novembro de 2000

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ARTIGO
O destino e o tipo de mulheres em que eu acredito

CARLOS FUENTES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Creio em mulheres concretas. Com sexo. Com nome. Com biografia. Com experiência. Com destino.
A filósofa judia alemã Edith Stein (1891-1942), discípula de Edmund Husserl, em 1933 entrou para um convento, como irmã Benedita da Cruz, mas nunca renunciou às suas raízes judaicas.
Alegou que o anti-semitismo era um "cristicídio" e pediu a Pio 12 uma encíclica de proteção aos judeus. O papa não protegeu os judeus, e Edith Stein foi deportada pelos nazistas ao primeiro campo de concentração, Dachau.
Quem pode ignorar esses fatos e falar de destino às mulheres da história? Edith Stein foi morta em Auschwitz, em 42. Havia dito: "A razão nos divide. A fé nos une", no livro "A Ciência da Cruz".
Anna Akhmatova (1889-1966) foi, talvez com a exceção de Ossip Mandelstam, a maior poeta russa do século 20. Os homens a amaram, mas não a compreenderam.
Por trás de sua aparente fragilidade, havia uma vontade férrea, que deu asas à sua maravilhosa poesia. Sua fé na poesia foi tanto a grandeza quanto o grilhão que a acorrentou.
Resolvida a seguir seu caminho livre para além das restrições de Zhdanóv e do "realismo socialista", foi caluniada e perseguida por Stálin. O sagaz ditador percebeu em Akhmatova uma força dupla, perigosa, intolerável -a de ser mulher e ser poeta. Em 1935, sua poesia foi proibida pelo regime. Seus poemas só permanecem na memória dos que os leram em tempo.
Mas a guerra devolve-lhe a popularidade e a honra: sua voz ressoa com os tons mais profundos da tradição literária russa e da resistência de seu povo. Termina consagrada. Consagrada em excesso. Seus poemas e conferências em defesa da cidade de Leningrado, a cidade sitiada, lhe valem ovações, popularidade, prêmios.
No final da guerra, Stálin se pergunta se essa mulher independente e genial não merece, o quanto antes, perder a ilusão de que, por ter contribuído para a vitória, conquistou a liberdade. Ordena que ela seja privada da liberdade e da glória.
Perde o apartamento, a renda como escritora. Vive na miséria, com frio, com fome. Sobrevive graças à caridade dos amigos. Para acabar de vez com a pretensão de que a liberdade criativa não custa caro, seu filho é enviado a um campo de concentração. Libertado em 1956, filho e mãe não se reconhecem. Não têm nada a dizer um ao outro.
O filho transfere à mãe o rancor por seu sofrimento. "Meus contemporâneos e eu podemos contar", escreve Akhmatova em "Poema sem um Herói", "como vivemos com medo inconsciente. Como criamos filhos para verdugos, filhos para a prisão e a câmara de torturas".
Quando Akhmatova morreu, a fila de homenagens na Casa do Escritor de Moscou se estendia por diversos quarteirões. Este é seu testamento: "Nem sequer hoje conhecemos bem o mágico coro de poetas que são nossos/ Nem sequer hoje entendemos que a língua russa é jovem e flexível/ Nem sequer hoje sabemos que mal começamos a escrever poesia, que a amamos e acreditamos nela".
A filósofa judia francesa Simone Weil (1909-1943) foi discípula de Alain e de seu mandamento de repensar tudo a cada ano, partindo da releitura de um filósofo e um poeta. Alain dizia não ser comunista nem socialista. "Pertenço à eterna esquerda, a que nunca exerce o poder que, por essência, se presta ao abuso."
Mas Simone Weil não se limitou a repensar. Quis converter seu pensamento em ação, colocá-lo à prova na rua, na fábrica, no campo de batalha. Como estudante, era conhecida como "a virgem vermelha", e seu modo de ser de esquerda foi começar a trabalhar em uma fábrica; depois passou a lutar contra o fascismo na Espanha e, a seguir, rechaçou o "patriotismo da Igreja" e os católicos da França que diziam "melhor Hitler do que a Frente Popular".
Mas Simone Weil rechaçou igualmente o comunismo soviético, depois de descobrir os expurgos de Stálin. Esta é sua convicção: "Dentro de pouco tempo, os revolucionários autênticos serão reconhecidos, porque serão os únicos que não falarão de revolução. Nada no presente merece este nome".
Quanto mais deitava raízes no trabalho e na política, mais atraída se sentia -entre a gravidade e a graça- por Deus. Tornou-se cristã fora da Igreja, que via como estrutura dogmática e burocrática. Ela queria estar com Deus e atuar livremente.
Em 15 de abril de 1943, Simone Weil morreu de inanição em um hospital inglês. Ela fora proibida de se unir à resistência na França. Por isso se negou a comer mais do que a ração diária de um prisioneiro em um campo, ainda que sofresse de tuberculose.
Acreditei a vida inteira em Simone Weil, desde que li seu maravilhoso ensaio "A Ilíada, Poema do Poder" e decorei as lições que ela deriva de Homero. "Ninguém está a salvo do destino. Nunca admire o poder nem odeie o inimigo nem despreze aqueles que sofrem."


Tradução Paulo Migliacci



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