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CONTARDO CALLIGARIS
Efeitos colaterais
Atendi vários sujeitos que
procuravam (legitimamente) uma análise ou uma terapia
para sofrer menos e viver melhor,
mas que se preocupavam com as
mudanças que a terapia poderia
acarretar. Temiam que a experiência os transformasse ao ponto
de empobrecer suas vidas. Tratava-se, quase sempre, de artistas,
convencidos de que havia uma
relação entre seus sofrimentos
neuróticos e sua capacidade de
criar e se expressar.
Imaginemos um exemplo análogo aos casos que conheci. Um
sujeito viveu uma infância particularmente nefasta: sei lá, o Camboja na época de Pol Pot, deportações, campos, mortes, lutos e fome. Hoje, nosso sujeito -refugiado em terras hospitaleiras- faz
desses horrores a fonte privilegiada de sua inspiração artística.
Críticos e público reconhecem que
sua produção expressa, por exemplo, uma angústia que alcança
proporções universais. Nela, todo
mundo reconhece um pouco de
seu próprio desamparo.
Mas nosso artista acorda a cada
noite urrando, perseguido por pesadelos de caveiras e meninos armados de metralhadora. Ele vive
numa ansiedade que impede
qualquer procura amorosa. A solidão multiplica sua dor.
Imagine agora que esse sujeito
peça a ajuda de um psicanalista
ou de um psicoterapeuta. Ele quer
dormir melhor e aprender a sorrir. No entanto ele suspeita que
seu sofrimento seja a alma de sua
arte -ou seja, daquilo que ele
tem de melhor para oferecer ao
mundo. Sua preocupação não é
apenas um cálculo oportunista
como: se me curo, perco a habilidade que paga minhas contas. Há
mais: separar-se desse sofrimento
lhe parece uma traição, pela qual
ele desistiria de ser ele mesmo.
Essa preocupação não deve ser
minimizada. Em princípio, uma
psicoterapia ou uma análise não
produzem (não conseguem produzir) mudanças que não sejam
desejadas pelo sujeito. Aliás, geralmente isso é considerado como
um limite da eficácia das psicoterapias. Reclama-se de que elas
não conseguem extirpar nossas
neuroses como se extirpam sisos
cariados. No caso que estou levantando, ocorre o contrário: os
sujeitos receiam que suas neuroses sejam extirpadas como dentes.
Essas reflexões nascem lendo
um artigo notável de Kay Redfield Jamison, professora de psiquiatria da Johns Hopkins University. O texto faz parte da coletânea "States of Mind" (editada
por R. Conlan), que é, de longe, o
conjunto de textos mais honestos
e sérios que já li sobre a relação
entre cérebro e mente (portanto
entre psicoterapia, psiquiatria
biológica, neurologia etc.).
Jamison constata que existe
uma correlação estatística entre a
criatividade artística e a psicose
maníaco-depressiva. Contrariamente ao que sugeria a ideologia
dos anos 60 e 70, a doença criativa não é a esquizofrenia, mas a
mania, em sua alternância com a
depressão. Ora, a psicose maníaco-depressiva tem origem genética. Mais cedo, mais tarde, o gene
que torna alguns sujeitos vulneráveis a essa doença será isolado.
Portanto disporemos de uma cura preventiva.
Redfield Jamison pergunta: "Se
há uma relação entre desordens
do humor e gênio artístico, que
riscos corremos tratando a desordem ou mesmo, pelos testes e pela
terapia genética, eliminando-a
completamente?" O risco seria
produzir uma humanidade futura sem os equivalentes de Schumann, Tennyson, Hemingway,
Lowell, Edgar Poe etc.
Segundo Jamison, o problema é
que, com o sofrimento maníaco-depressivo, seria suprimida uma
parte relevante (embora dolorosa) da experiência humana. "Esperamos -ela escreve- que (os
artistas) contemplem aqueles aspectos da vida que nós preferimos
ignorar; que eles olhem para a
brevidade da existência, que vejam a corrupção do universo e
saibam como a morte nos espreita
e que, com isso, ainda consigam
afirmar a força da vida perante a
morte. É bem possível que sofrer
de psicose maníaco-depressiva
permita a algumas pessoas criativas produzir essas reconciliações".
Jamison (que sofre ela mesma
da doença) não minimiza o sofrimento maníaco-depressivo. Tampouco recusa os tratamentos possíveis. Mas lembra que a doença
psíquica é também uma vivência
que estende os limites da experiência humana. Suprimir geneticamente uma dimensão dessa experiência é tanto mais problemático quando, como nesse caso, ela
permite a existência de obras que
valem para todos.
Fácil egoísmo de leitor ou espectador? Acho que não. Muitos criadores não gostariam de se ver livres de sua mania e de sua depressão se, em troca, perdessem o
que dá sentido a suas vidas. O
poeta Robert Lowell dizia de suas
crises de mania que "a glória, a
violência e a banalidade dessa experiência" é algo que vicia. Certamente ele não aceitaria uma cura
cujos passos ele não pudesse controlar cuidadosamente.
P.S.: A coluna da semana passada, "Crianças do Divórcio", suscitou um número inusitado de e-mails. Agradeço aos leitores. É
impossível responder a todos. Na
próxima quinta, retomarei o tema, debatendo algumas das
questões levantadas pelos comentários recebidos.
E-mail - ccalligari@uol.com.br
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