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CRÍTICA
Von Trier filma alienação dos musicais hollywoodianos
TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
"Dançando no Escuro"
começa como um musical de bastidores, mas logo descobrimos que não se trata da usina
de sonhos de Hollywood, mas de
uma fábrica de verdade, cujos
operários ensaiam um musical. O
espetáculo emprega o diminuto
tempo livre da protagonista, uma
proletária quase cega, imigrante
tcheca na América (Björk).
Essencialmente marxista, a visão que Lars von Trier reserva ao
musical hollywoodiano remonta
ao manifesto de Guy Debord contra a "sociedade do espetáculo".
Trata-se de ver aqui o musical como fabricação da alienação.
Os números musicais do filme
nunca se confundem com a realidade, como nos "sonhos implicados" dos musicais americanos.
Eles surgem como pura evasão.
Quanto mais dura é a realidade de
Björk, mais ela se aliena em seus
sonhos hollywoodianos. Mais cega ela fica, literalmente.
Será ainda preciso que nossa
proletária seja totalmente expropriada pela classe dominante,
aqui representada pelos proprietários de seu bangalô, que, literalmente, roubam-lhe o salário. O
processo não poderia deixar de
culminar numa farsa judiciária
(depois de passar pelo melodrama e pelo musical, Trier chega a
outro gênero típico de Hollywood: o filme de tribunal).
Em "Uma Mulher É uma Mulher" (1961), Godard já se propunha ao paradoxo de realizar "um
musical neo-realista", contando a
história de uma trabalhadora que
sonhava participar de um musical. Godard contrapunha os sonhos de sua personagem a tristes
incertos documentais e decompunha os números musicais.
Trier, por sua vez, reserva tal decomposição ao "real" de seu filme, operando pela descontinuidade. Essa nova decupagem acarreta, no entanto, para a encenação, uma certa impostura. Em
"Os Idiotas", podíamos aceitar esse novo jogo de representação,
porque ele era justificado pela
idiotia forjada dos personagens.
Aqui, porém, Trier reserva tal estilo a uma situação (melo)dramática, supostamente real e trágica.
É como se Trier estivesse, afinal,
caçoando da boa-fé de sua esforçada e digna atriz. A crueldade do
cineasta, escusada pela crueldade
do sistema que denuncia, fica
mais evidente ao final, quando,
diminuindo o ritmo dos cortes,
ele estende até o intolerável o drama, devassando no rosto da atriz
todo o seu desassossego.
Dançando no Escuro
Dancer in the Dark
Direção: Lars von Trier
Produção: Dinarmarca/Suécia, 2000
Com: Björk, Catherine Deneuve
Quando: hoje, às 21h, no Cinearte 1
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