São Paulo, quinta-feira, 02 de novembro de 2000

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CRÍTICA
Von Trier filma alienação dos musicais hollywoodianos

TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Dançando no Escuro" começa como um musical de bastidores, mas logo descobrimos que não se trata da usina de sonhos de Hollywood, mas de uma fábrica de verdade, cujos operários ensaiam um musical. O espetáculo emprega o diminuto tempo livre da protagonista, uma proletária quase cega, imigrante tcheca na América (Björk).
Essencialmente marxista, a visão que Lars von Trier reserva ao musical hollywoodiano remonta ao manifesto de Guy Debord contra a "sociedade do espetáculo". Trata-se de ver aqui o musical como fabricação da alienação.
Os números musicais do filme nunca se confundem com a realidade, como nos "sonhos implicados" dos musicais americanos. Eles surgem como pura evasão. Quanto mais dura é a realidade de Björk, mais ela se aliena em seus sonhos hollywoodianos. Mais cega ela fica, literalmente.
Será ainda preciso que nossa proletária seja totalmente expropriada pela classe dominante, aqui representada pelos proprietários de seu bangalô, que, literalmente, roubam-lhe o salário. O processo não poderia deixar de culminar numa farsa judiciária (depois de passar pelo melodrama e pelo musical, Trier chega a outro gênero típico de Hollywood: o filme de tribunal).
Em "Uma Mulher É uma Mulher" (1961), Godard já se propunha ao paradoxo de realizar "um musical neo-realista", contando a história de uma trabalhadora que sonhava participar de um musical. Godard contrapunha os sonhos de sua personagem a tristes incertos documentais e decompunha os números musicais.
Trier, por sua vez, reserva tal decomposição ao "real" de seu filme, operando pela descontinuidade. Essa nova decupagem acarreta, no entanto, para a encenação, uma certa impostura. Em "Os Idiotas", podíamos aceitar esse novo jogo de representação, porque ele era justificado pela idiotia forjada dos personagens. Aqui, porém, Trier reserva tal estilo a uma situação (melo)dramática, supostamente real e trágica.
É como se Trier estivesse, afinal, caçoando da boa-fé de sua esforçada e digna atriz. A crueldade do cineasta, escusada pela crueldade do sistema que denuncia, fica mais evidente ao final, quando, diminuindo o ritmo dos cortes, ele estende até o intolerável o drama, devassando no rosto da atriz todo o seu desassossego.


Dançando no Escuro
Dancer in the Dark
    Direção: Lars von Trier Produção: Dinarmarca/Suécia, 2000 Com: Björk, Catherine Deneuve Quando: hoje, às 21h, no Cinearte 1




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