São Paulo, sábado, 02 de novembro de 2002

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CRÍTICA

Alain Robbe-Grillet flerta com sua própria trajetória

MARCELO REZENDE
DA REPORTAGEM LOCAL

O que é uma história, o que é a realidade? O que é a realidade de uma história? Alain Robbe-Grillet, desde sua estréia na ficção francesa, em 1953, insiste serem essas as questões essenciais para autores e leitores, e em "A Retomada" há um pouco mais do mesmo de Robbe-Grillet: o desafio, o humor, a ousadia, o pastiche, o erotismo e sua necessidade em criar um "novo romance".
No livro (o título original é "La Reprise", de um texto do filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard), ele narra uma aventura de espionagem passada em Berlim.
A ação acontece em 1949, quando o agente HR -alguém não muito importante na hierarquia do serviço secreto francês- viaja pela capital alemã em ruínas, encarregado de uma missão da qual tudo lhe é desconhecido. Ele apenas segue instruções, mas nada se resolve como o esperado.
Há, claro, o sistema Robbe-Grillet em "A Retomada", e para se aproximar dele, do método do qual foi ele um ideólogo, é necessário um recuo histórico.
Em Paris, nos anos 50, o editor Jérôme Lindon conseguiu reunir em sua Éditions de Minuit uma geração de "novos romancistas", fundadores de uma escola -uma designação da crítica da época, e não dos envolvidos- chamada de "novo romance". Esse foi o "Nouveau Roman", com uma proposta breve, revolucionária.
Em 1956, em um ensaio chamado "O Realismo, a Psicologia e o Futuro do Romance", Robbe-Grillet descrevia assim as intenções do "Nouveau Roman": "Tudo se trata de preservar o romance dos dois perigos que o ameaçam: a esclerose e a decomposição".
A isso ele acrescenta uma outra idéia, a certeza de ter chegado a hora na qual a narrativa clássica (e o apego ao realismo), tanto quanto experimentações formais, já não dão conta da tarefa do escritor, do leitor e da literatura: "Na verdade, ninguém mais acredita. O leitor desconfia do escritor. O escritor desconfia dos personagens. O personagem parece desconfiar de si mesmo", ele escreve.
Esse foi então o início para Robbe-Grillet, que pretendia, onde a oportunidade surgisse, promover uma agitação permanente, fazendo da desconfiança sua matéria-prima. O contra-ataque, em seu país, foi imenso; na verdade, entre os franceses, ainda dura, e continua, como antes, ruidoso.
Não raramente, o "Nouveau Roman" é acusado de ter assassinado as letras francesas, assustando e afastando leitores e críticos crentes na idéia de que um bom livro é feito apenas com "uma boa história e personagens interessantes e bem definidos".
Mas, curiosamente, é exatamente isso que "A Retomada" oferece. Há o enredo encantador e personagens sempre fascinantes; talvez nada lembre, na ordem ou no estilo, a ficção que hoje domina a produção contemporânea, mas isso, para Robbe-Grillet, não é um problema, e sim uma proposta de solução.

Gênero
Alain Robbe-Grillet tem hoje 80 anos, adora falar sobre sua coleção de cactos e, ao lado de Claude Simon (que em 2001 publicou seu "Le Tramway"), é um dos grandes autores do "Nouveau Roman" vivos e, principalmente, atuantes.
Na França, é uma personalidade, fazendo aparições públicas para debater seus livros e filmes. Além de ser ele mesmo cineasta, Robbe-Grillet é o autor do roteiro de "O Ano Passado em Marienbad", dirigido por Alain Resnais, em 1961.
"A Retomada" marcou sua volta ao romance, no ano passado, após ter encerrado sua trilogia "romanesca" -uma "autobiografia ficcional". Mas Robbe-Grillet continua extremamente interessado em si mesmo, na maneira escolhida durante décadas para montar sua obra; isso é evidente no livro, ao menos em três momentos: no período escolhido, nas obsessões e no gênero retrabalhado pelo escritor.
No primeiro caso há Berlim, descrita como Robbe-Grillet a viu (ou imaginou ter visto) em sua juventude; depois, suas manias quase permanentes, como a pedofilia e o desejo de retomar, disfarçadamente, os temas das tragédias antigas -ele é um escritor fascinado pela ação do destino.
Por fim, há o gênero. Seu livro é um romance de espionagem, mas que dá um passo além, assim como tinha já feito com o policial em "Les Gommes", sua primeira obra publicada.
Enquanto um narrador descreve seus encontros e reflexões ao leitor, há um outro que por meio de notas de pé de página corrige as imprecisões deixadas pelo primeiro. Ou seriam eles a mesma pessoa?
"A Retomada" é então um flerte com sua própria trajetória, um livro imensamente moderno, uma reafirmação das habilidades do "novo romance"; e, ainda, um universo de possibilidades para seus leitores, que aprenderam com Alain Robbe-Grillet a recusar o que parece fácil em nome do prazer do enganosamente difícil.


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