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LIVROS/LANÇAMENTOS
"MAR INQUIETO"
Opositor da modernização do Japão, autor elogia rusticidade
Yukio Mishima encanta com a magia da simplicidade
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Shinji é um jovem pescador
muito pobre. Hatsue é a linda
filha do homem mais rico da aldeia. "Mar Inquieto" narra a breve história do amor entre os dois.
Este romance de Yukio Mishima
(1925-1970) não poderia ser mais
simples, mais límpido.
Sem dúvida, o leitor já viu tudo
isso antes: a separação forçada do
casal, as cartas de amor que trocam às escondidas, a ajuda de
uma alcoviteira, as provas de dedicação que serão exigidas do rapaz... É quase inacreditável que, a
partir de um material tão comum,
tenha surgido um livro com tanto
poder de encantamento.
Opositor fanático do processo
modernizante vivido pelo Japão
depois da Segunda Guerra, Yukio
Mishima faz neste romance de
1954 o elogio dos costumes rústicos de uma pequena comunidade
pesqueira. Desde o início do livro,
quando o autor descreve as belas
paisagens da ilha de Utajima, parece que estamos diante do risco
de uma idealização literária do cotidiano, bastante duro e pobre,
daquela população. Contudo o
tom do romance não parece falso
em nenhum momento.
Um dos segredos talvez esteja
na maneira com que a narrativa
alterna, de modo quase imperceptível, a proximidade e a distância com relação aos fatos e aos
personagens. O primeiro capítulo
começa com uma visão panorâmica da ilha, como se fosse um
manual de geografia: "Utajima é
uma ilha pequena de 1.400 habitantes e nem quatro quilômetros
de extensão costeira. Nela, dois locais oferecem as mais belas vistas.
O primeiro é o santuário Yashiro,
que se ergue voltado para noroeste, quase no cume da ilha".
Essa descrição "atemporal",
com os verbos conjugados numa
espécie de presente imutável, é,
contudo, interrompida de forma
muito nítida, mas muito sutil, pela narração instantânea do que
acontece no "aqui" e no "agora"
do romance.
Alternando o tempo perene da
paisagem com o presente pontual
dos pequenos fatos que ocupam o
cotidiano da ilha, o texto consegue efeitos de grande magia; é como se cada acontecimento, por
ínfimo que seja, ganhasse o poder
de uma verdadeira aparição.
O que poderia haver de "poético" demais nesse procedimento é
contrabalançado de várias maneiras. Uma das mais marcantes talvez seja a secura, o quase desajeitamento, com que o autor termina cada capítulo, como que deixando os personagens entregues a
si mesmos. Eis, por exemplo, o final do segundo capítulo: "Shinji
era sem dúvida um rapaz equilibrado, mas, mesmo assim, uma
estranha emoção o assaltava
quando, ao fim de um dia de pesca, contemplava um cargueiro
branco correndo sobre a linha do
horizonte contra um fundo de
nuvens coloridas. O mundo assumia de súbito uma vastidão nunca imaginada e vinha a seu encontro. Shinji percebia esse mundo
futuro como um trovão longínquo, cujo ribombo lhe chegava de
longe e logo silenciava. Havia
uma pequena estrela-do-mar seca
sobre o convés da proa. Sentado
ali, o jovem desviou o olhar das
nuvens e sacudiu a cabeça cingida
por uma testeira de toalha, branca
e felpuda".
O detalhe meio flaubertiano da
testeira de toalha vem quebrar a
divagação em torno das nuvens e
da vastidão do mundo; sua intenção não é, contudo, puramente
desmistificadora e anti-romântica. Parece, ao contrário, carinhosa, proporcional à modéstia do
personagem.
O mesmo tema -o contraste
entre o mundo exterior e a vida
simples da aldeia- reaparece
quando o irmão de Shinji volta de
uma excursão escolar à cidade
grande. "Era evidente que o menino trouxera impressões vívidas da
viagem, mas no momento não sabia como expressá-las (...). Que
paradeiro teriam tido aquelas coisas espantosas como bondes, carros, arranha-céus e anúncios luminosos, que se haviam aproximado dele, resvalado como visões
cintilantes e em seguida desaparecido? Dentro de casa permaneciam, do mesmo jeito que antes
da viagem, o armário de louças, o
relógio de parede, o altar caseiro,
a mesinha de refeições (...). Com
eles, Hiroshi era capaz de se comunicar sem nada dizer. Agora,
porém, tudo isso e mais a mãe o
importunavam, pediam que lhes
contasse histórias da viagem."
O menino acaba relatando, mal
e mal, o que viu na cidade. "E então todos ouviram e se deram por
satisfeitos, parando de insistir para que lhes contasse histórias. Todas as coisas tinham voltado a ser
o que eram. Estava restabelecida a
comunicação sem palavras com o
armário de louças, o relógio de
parede, a mãe, o irmão, o braseiro
velho e sujo de fuligem, e também
com o troar das ondas."
Talvez seja este, para o autor, o
propósito da literatura: o de efetuar, magicamente, uma restauração da ordem modesta e silenciosa das coisas. O fato de isso estar
acompanhado, na biografia de
Mishima, por um compromisso
político ultraconservador é a meu
ver pouco importante para a leitura de "Mar Inquieto". O texto
não toma partido daquilo que há
de repressor nos costumes tradicionais nem acena com nenhum
tipo de escapismo romântico; é
como se o autor tivesse feito, com
elementos mínimos de intriga e
ambientação poética, um idílio
"branco", salino, lavado pelo mar.
Mar Inquieto
Autor: Yukio Mishima
Tradução: Leiko Gotoda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (164 págs.)
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