São Paulo, sábado, 02 de novembro de 2002

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"MAR INQUIETO"

Opositor da modernização do Japão, autor elogia rusticidade

Yukio Mishima encanta com a magia da simplicidade

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

Shinji é um jovem pescador muito pobre. Hatsue é a linda filha do homem mais rico da aldeia. "Mar Inquieto" narra a breve história do amor entre os dois. Este romance de Yukio Mishima (1925-1970) não poderia ser mais simples, mais límpido.
Sem dúvida, o leitor já viu tudo isso antes: a separação forçada do casal, as cartas de amor que trocam às escondidas, a ajuda de uma alcoviteira, as provas de dedicação que serão exigidas do rapaz... É quase inacreditável que, a partir de um material tão comum, tenha surgido um livro com tanto poder de encantamento.
Opositor fanático do processo modernizante vivido pelo Japão depois da Segunda Guerra, Yukio Mishima faz neste romance de 1954 o elogio dos costumes rústicos de uma pequena comunidade pesqueira. Desde o início do livro, quando o autor descreve as belas paisagens da ilha de Utajima, parece que estamos diante do risco de uma idealização literária do cotidiano, bastante duro e pobre, daquela população. Contudo o tom do romance não parece falso em nenhum momento.
Um dos segredos talvez esteja na maneira com que a narrativa alterna, de modo quase imperceptível, a proximidade e a distância com relação aos fatos e aos personagens. O primeiro capítulo começa com uma visão panorâmica da ilha, como se fosse um manual de geografia: "Utajima é uma ilha pequena de 1.400 habitantes e nem quatro quilômetros de extensão costeira. Nela, dois locais oferecem as mais belas vistas. O primeiro é o santuário Yashiro, que se ergue voltado para noroeste, quase no cume da ilha".
Essa descrição "atemporal", com os verbos conjugados numa espécie de presente imutável, é, contudo, interrompida de forma muito nítida, mas muito sutil, pela narração instantânea do que acontece no "aqui" e no "agora" do romance.
Alternando o tempo perene da paisagem com o presente pontual dos pequenos fatos que ocupam o cotidiano da ilha, o texto consegue efeitos de grande magia; é como se cada acontecimento, por ínfimo que seja, ganhasse o poder de uma verdadeira aparição.
O que poderia haver de "poético" demais nesse procedimento é contrabalançado de várias maneiras. Uma das mais marcantes talvez seja a secura, o quase desajeitamento, com que o autor termina cada capítulo, como que deixando os personagens entregues a si mesmos. Eis, por exemplo, o final do segundo capítulo: "Shinji era sem dúvida um rapaz equilibrado, mas, mesmo assim, uma estranha emoção o assaltava quando, ao fim de um dia de pesca, contemplava um cargueiro branco correndo sobre a linha do horizonte contra um fundo de nuvens coloridas. O mundo assumia de súbito uma vastidão nunca imaginada e vinha a seu encontro. Shinji percebia esse mundo futuro como um trovão longínquo, cujo ribombo lhe chegava de longe e logo silenciava. Havia uma pequena estrela-do-mar seca sobre o convés da proa. Sentado ali, o jovem desviou o olhar das nuvens e sacudiu a cabeça cingida por uma testeira de toalha, branca e felpuda".
O detalhe meio flaubertiano da testeira de toalha vem quebrar a divagação em torno das nuvens e da vastidão do mundo; sua intenção não é, contudo, puramente desmistificadora e anti-romântica. Parece, ao contrário, carinhosa, proporcional à modéstia do personagem.
O mesmo tema -o contraste entre o mundo exterior e a vida simples da aldeia- reaparece quando o irmão de Shinji volta de uma excursão escolar à cidade grande. "Era evidente que o menino trouxera impressões vívidas da viagem, mas no momento não sabia como expressá-las (...). Que paradeiro teriam tido aquelas coisas espantosas como bondes, carros, arranha-céus e anúncios luminosos, que se haviam aproximado dele, resvalado como visões cintilantes e em seguida desaparecido? Dentro de casa permaneciam, do mesmo jeito que antes da viagem, o armário de louças, o relógio de parede, o altar caseiro, a mesinha de refeições (...). Com eles, Hiroshi era capaz de se comunicar sem nada dizer. Agora, porém, tudo isso e mais a mãe o importunavam, pediam que lhes contasse histórias da viagem."
O menino acaba relatando, mal e mal, o que viu na cidade. "E então todos ouviram e se deram por satisfeitos, parando de insistir para que lhes contasse histórias. Todas as coisas tinham voltado a ser o que eram. Estava restabelecida a comunicação sem palavras com o armário de louças, o relógio de parede, a mãe, o irmão, o braseiro velho e sujo de fuligem, e também com o troar das ondas."
Talvez seja este, para o autor, o propósito da literatura: o de efetuar, magicamente, uma restauração da ordem modesta e silenciosa das coisas. O fato de isso estar acompanhado, na biografia de Mishima, por um compromisso político ultraconservador é a meu ver pouco importante para a leitura de "Mar Inquieto". O texto não toma partido daquilo que há de repressor nos costumes tradicionais nem acena com nenhum tipo de escapismo romântico; é como se o autor tivesse feito, com elementos mínimos de intriga e ambientação poética, um idílio "branco", salino, lavado pelo mar.

Mar Inquieto


    
Autor: Yukio Mishima
Tradução: Leiko Gotoda
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (164 págs.)




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