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DISCO/"LIVE IN TOKYO"
O imprevisível Brad Mehldau e as verdades da ilusão da música
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
A nota "lá" começa a pulsar,
calmamente, na região média do piano, e não pára mais.
Sustenta ou atravessa harmonias,
virtualmente do começo ao fim de
"Someone to Watch Over Me"
(George e Ira Gershwin), assim
como um "sol" atravessa e sustenta as harmonias de "How Long
Has This Been Going On?"
(idem), na outra ponta desse disco tão bem tramado.
As artes de Brad Mehldau (que
se apresenta no Tim Festival sexta) têm muito desse tipo de engenho; e as habilidades de composição só favorecem a invenção espontânea. Ao vivo em Tóquio, o
pianista americano gravou um
dos discos definitivos de sua carreira, que a essa altura é a nossa
carreira de ouvintes também.
Que o disco comece em lá bemol maior, para depois subir a lá e
terminar em sol não pode ser
coincidência. Ainda mais quando
se nota que Mehldau começa e
termina tocando duas canções do
cantor e compositor inglês Nick
Drake (morto em 1974, aos 26
anos), sendo que a última, "River
Man", por um lado retoma, em
outro registro, a sua gravação no
antológico "Art of the Trio, Vol.
3" (98) e, por outro, dá continuidade às longas notas "sol" repetidas pelos sopros na última faixa
do disco orquestral "Largo" (02).
O fato de ele gravar canções de
rock e pop já é notável, no contexto exclusivista do jazz. E o que ele
faz desfaz o limite dessas canções,
para liberar o que têm de mais secreto e rico. Um gesto característico é a separação de pequenas células -algum intervalo repetido,
ou um padrão rítmico básico-,
que vão crescendo e se metamorfoseando, até chegar a texturas
polifônicas complexas, com camadas de música deslizando
umas sobre as outras.
Em alguns casos, o resultado leva a pensar nos "Estúdios para
Pianola", de Conlon Nancarrow
(1912-97), com cada mão tocando
num tempo próprio. Uma das
passagens mais extraordinárias
desse tipo começa aos 5min25s de
"From This Moment On" (Cole
Porter) e envolve três planos diferenciados. Aqui o processo de
contaminação parece ter se invertido: são as energias do rock que
vêm revitalizar os standards jazzísticos, segundo uma nova ordem das coisas, onde as fronteiras
deixam de ser relevantes.
Só depois dessa educação se pode escutar a monumental "Paranoid Android", quase 20 minutos
de música recriando um clássico
vanguardista do Radiohead. Se a
canção original já era um amálgama de três, agora ganhou espaço
para multiplicar potências, valendo-se de toda uma enciclopédia
pianística. Depois de "Monk's
Dream" (Thelonius Monk), esse
outro sonho faz da paranóia uma
alucinação impressionante e arranca de Brad Mehldau outro repertório harmônico, mais duro e
abrasivo, capaz de resistir até às
belezas de seu mais habitual encantamento.
Em canções como as de Gershwin e Porter, o encantamento
-harmonias sensuais lancinantes, melodias dolorosas, ou dolorosamente felizes- toca em verdades que só mesmo a ilusão da
música pode nos dar. Em "River
Man", depois, a simples oscilação
maior-menor, dramatizada por
um padrão do baixo e desafiada
pela certeza daquele "sol" repetido, traduz o máximo num mínimo, no espírito da letra lembrada.
São as liberdades do "homem do
rio", ao mesmo tempo imprevisíveis e naturais, como é a arte do
mais arrojado e mais natural,
mais inventivo e mais simples,
mais imprevisível e impressionante pianista da nova geração.
Live in Tokyo
Artista: Brad Mehldau
Lançamento: Warner
Quanto: R$ 45, em média
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