São Paulo, sexta-feira, 02 de novembro de 2007

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Todas as mulheres do mundo

Eduardo Coutinho mistura depoimentos de "atrizes naturais e profissionais" em "Jogo de Cena"; o documentário integra retrospectiva com 7 filmes do diretor que começa hoje em SP

Bruno Miranda/Folha Imagem
Coutinho, durante entrevista em SP


SILVANA ARANTES
DA REPORTAGEM LOCAL

Em sua carreira, o cineasta Eduardo Coutinho, 74, ressuscitou duas vezes. "A primeira", cita ele, com "Cabra Marcado para Morrer" (1984), que superou a interdição da censura, tornou-se um clássico e abre hoje em São Paulo retrospectiva em homenagem ao diretor e em comemoração ao segundo aniversário do projeto "Folha Documenta".
A segunda vez em que Coutinho ressuscitou foi no fim dos anos 90, quando "Santo Forte" pôs fim a um hiato de 15 anos sem que ele lançasse filmes.
Neste 2007, Coutinho acaba de se reinventar, com "Jogo de Cena", um filme "em primeiro lugar sobre as mulheres e, em segundo, sobre a representação", conforme ele define.
O novo longa encerra a retrospectiva na próxima quinta (8/11), às 19h, em sessão especial seguida de debate com o diretor. A estréia oficial nas salas ocorre no dia seguinte.
Gravado no cenário fixo de um teatro, "Jogo de Cena" mostra personagens que vão ao encontro de seu autor, e não o contrário, como era típico na obra de Coutinho.
O diretor deu às atrizes profissionais que participam do longa a chance do "take dois", incorporando o artifício da repetição, vetado em seus documentários anteriores.
Apesar dessas diferenças, Coutinho argumenta que "Jogo de Cena" não tem essência distinta de seus demais filmes, apenas a radicaliza, "por uma razão simples", diz: "As pessoas que filmo são atores naturais". Ou seja, todos representam.
Em "Jogo de Cena", atrizes naturais têm suas narrativas biográficas reinterpretadas por atrizes profissionais. Apenas três das mulheres que representam vivências alheias são amplamente conhecidas pelo público -Marilia Pêra, Andréa Beltrão e Fernanda Torres.
Nos demais casos, o diretor embaralha os depoimentos (as cartas do jogo) de forma a não deixar evidente quem atua e quem interpreta a si mesma.
Coutinho acredita que, ao misturar atrizes naturais e profissionais, "Jogo de Cena" ressalta que "a questão da verdade está superada" num documentário, "se a pessoa performa bem sua vida e sua memória".
Em outras palavras, dada a inevitabilidade do teatro social, é vã a busca pela verdade, mesmo num documentário. "O que é absolutamente verdadeiro é que houve uma filmagem. O resto não importa", afirma.
É o interesse de Coutinho pela "performance" que o faz defender até mesmo discursos antagônicos ao seu pensamento, como o da personagem de "Edifício Master" que classifica o brasileiro como um povo preguiçoso. "Embora exprima um pensamento claramente reacionário, ela fala aquilo com uma veemência e uma visceralidade extraordinárias", diz o diretor, para acrescentar: "Do lugar em que ela fala, posso compreendê-la. [A mulher é] Espanhola, 50 anos, [criada no] puritanismo católico, vem para o Brasil, trabalha desde os 15".
Talvez venha da disposição de Coutinho em compreender suas personagens o fato de que quase todas as mulheres de "Jogo de Cena" relatem ao diretor experiências duríssimas. Coutinho identifica nesses relatos íntimos um desejo de "cicatrizar a ferida". Ele diz que, "geralmente, as pessoas que contam coisas fortes sobre a vida, depois da filmagem, se sentem muito bem".

Complicação
Para o diretor, o desafio que se impõe após a conclusão das filmagens é o de respeitar os relatos na hora de editá-los, de forma a não acentuar as feridas.
Em "Jogo de Cena", diz ele, "foi muito complicado" escolher os trechos dos depoimentos e decidir se "determinados fatos poderiam ou não ser contados por uma atriz".
Em pelo menos um depoimento, Coutinho "não quis brincar com nada" do que havia sido narrado e excluiu da montagem a interpretação da atriz.
No caso da mulher cujo filho é morto ao reagir a um assalto, o diretor optou por exibir na íntegra o relato da personagem real e o da atriz. Poucos dos espectadores que já assistiram ao filme em festivais foram capazes de identificar qual era qual.
"Comecei a ver como é relativo o julgamento sobre o bom ator", diz o cineasta, que torce pela ascensão profissional da "extraordinária atriz" que interpreta a mãe. "Ela é terceira figurante na Globo. Quem sabe passe a figurante com fala."
Além de tentar desvendar o jogo de cena, o público, em geral, deixa o filme com a dúvida de por que Coutinho filmou só mulheres. Ele responde: "Escolho o outro de mim. Se sou supostamente homem, vou falar com supostamente mulheres, pelo menos anatomicamente".


Colaborou LEONARDO CRUZ, editor-assistente da Ilustrada.


Texto Anterior: Horário nobre na TV aberta
Próximo Texto: Saiba mais: Ciclo marca o 2º ano do Folha Documenta
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.