São Paulo, Segunda-feira, 03 de Janeiro de 2000


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FERNANDO GABEIRA
O ano 2000 entrou e não doeu quase nada

Na primeira segunda-feira de 2000, sobreviventes do bug do ano 2000, ficamos reduzidos a uma ressaca milenar. Nesse momento, em que as lembranças das festas começam a se apagar, talvez seja bom lembrar que era tudo de mentirinha: a idéia de que tudo ia mudar com uma simples explosão de foguetes à meia-noite não iria mesmo se sustentar nem no primeiro minuto.
O tempo passa, atingimos a carismática medida dos três zeros, mas, no entanto, o Brasil dava sinais de que continuaria resistindo com sua mesmice, mesmo antes dos primeiros estampidos das garrafas de champanhe se abrindo. No mar, a maré vermelha era nosso Armagedon ecológico.
Biólogos discutem a causa da multiplicação das algas, mas tudo indica que é mais prosaica do que pode imaginar nossa vã ciência. Já vi nas grandes lagoas do Rio esse crescimento anormal das algas e posso dizer, com a leviandade de um leigo, que é tudo a mesma merda. Sem ela, as algas não se multiplicariam como num milagre ao avesso.
Militares fizeram um almoço no Rio, falaram o que falam regularmente: golpe, fuzilamento, alta do custo de vida, dificuldades da missão de um síndico -e um grande arrepio de medo percorreu as espinhas nacionais.
A globalização destruiu empregos, fechou fábricas, reduziu o poder do Estado nacional, mas uma das únicas coisas positivas que trouxe no seu bojo -a quase impossibilidade de um golpe militar- não foi captada. O tempo passa, as cabeças ficam. Isso não é verdade. Diria melhor assim: o tempo passa, as cabeças mudam, só que bem mais devagar.
Quem não se lembra das imagens terríveis dos campos de concentração?
Marcaram o século 20. Nas prisões de São Paulo, e de outros lugares também, lançamos nossa réplica de fim de século: centenas de meninos sem camisa, sentados num pátio com as mãos na cabeça. Mensagem mais clara não pode haver: estamos comprometidos a prolongar os horrores do século 20, simplesmente porque nossa mentalidade se recusa a sair dele.
Bem que desconfiava, em dezembro, que essa segunda-feira chegaria. As pessoas telefonavam, marcávamos compromissos e chegávamos sempre à conclusão de que era melhor esperar a passagem do ano. Nestas duas semanas nada se resolve, dizia eu, vamos jogar para 2000. Em alguma parte do inconsciente, algo me dizia: o ano vai começar com muitos rabos de foguete.
Os foguetes explodiram nos céus do réveillon, ficaram os rabos. Todo ano é assim, só que esse é redondo demais, e tudo o que é redondo demais acaba ganhando essa dimensão mítica, como se fosse um mandala.
Pode ser que essa idéia do redondo, do circular, reinstale debates eternos na história da humanidade. O Brasil inicia o ano 2000 com um grande tema na agenda: a luta contra a miséria. "Museu de novidades", como diria o Cazuza. Num brilhante ensaio sobre o socialismo, Isaiah Berlin mostra que a denúncia da miséria estava presente já no "Velho Testamento" e outros textos sagrados. A idéia de que os recursos materiais são injustamente distribuídos nos persegue desde o início dos tempos e, já em Platão, ficava bem claro que a busca da riqueza obstrui o desenvolvimento de inúmeras qualidades humanas.
Talvez a diferença agora é que necessitamos dar uma resposta dentro de limites bem claros: não há sociedade ideal, nem terra prometida para se alcançar. No entanto, é possível cavar um caminho aproveitando o carisma da entrada do século.
Aqui no Rio, por exemplo, Brizola e Garotinho estão empenhados num interessante debate. Brizola acusa Garotinho de misturar Igreja e Estado, apesar de todo o sangue que a humanidade verteu para separá-los.
Garotinho lembra a Brizola de um compromisso eleitoral, porque seu parceiro estaria sofrendo de amnésia. Brizola contesta: "Isso não é coisa de um verdadeiro evangélico".
Que tal esta transcendente questão para iniciar o ano: o que é um verdadeiro evangélico? Usa gravata ou só uma camisa esporte, fechada no colarinho? Acena a Bíblia com a mão direita ou com a mão esquerda? Promete a cura da Aids, do homossexualismo ou do lumbago?
Italo Calvino, nos textos para o novo milênio, diz que o século 21 será leve. Aproveitemos então, agora que acabaram as festas.
Vamos agradecer à La Ninã o verão brando, a brisa marinha, as noites de lua, o lancinante miado dos gatos nos telhados de Copacabana. Mergulhada no oceano, La Ninã fez o que pode para que este ano não seja como os outros. Resta a parte que nos cabe, para desdobrar esse mito de três zeros.


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