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FERNANDO GABEIRA
O ano 2000 entrou e não doeu quase nada
Na primeira segunda-feira de
2000, sobreviventes do bug do ano
2000, ficamos reduzidos a uma
ressaca milenar. Nesse momento,
em que as lembranças das festas
começam a se apagar, talvez seja
bom lembrar que era tudo de
mentirinha: a idéia de que tudo
ia mudar com uma simples explosão de foguetes à meia-noite não
iria mesmo se sustentar nem no
primeiro minuto.
O tempo passa, atingimos a carismática medida dos três zeros,
mas, no entanto, o Brasil dava sinais de que continuaria resistindo com sua mesmice, mesmo antes dos primeiros estampidos das
garrafas de champanhe se abrindo. No mar, a maré vermelha era
nosso Armagedon ecológico.
Biólogos discutem a causa da
multiplicação das algas, mas tudo indica que é mais prosaica do
que pode imaginar nossa vã ciência. Já vi nas grandes lagoas do
Rio esse crescimento anormal das
algas e posso dizer, com a leviandade de um leigo, que é tudo a
mesma merda. Sem ela, as algas
não se multiplicariam como num
milagre ao avesso.
Militares fizeram um almoço
no Rio, falaram o que falam regularmente: golpe, fuzilamento, alta
do custo de vida, dificuldades da
missão de um síndico -e um
grande arrepio de medo percorreu as espinhas nacionais.
A globalização destruiu empregos, fechou fábricas, reduziu o poder do Estado nacional, mas uma
das únicas coisas positivas que
trouxe no seu bojo -a quase impossibilidade de um golpe militar- não foi captada. O tempo
passa, as cabeças ficam. Isso não é
verdade. Diria melhor assim: o
tempo passa, as cabeças mudam,
só que bem mais devagar.
Quem não se lembra das imagens terríveis dos campos de concentração?
Marcaram o século 20. Nas prisões de São Paulo, e de outros lugares também, lançamos nossa
réplica de fim de século: centenas
de meninos sem camisa, sentados
num pátio com as mãos na cabeça. Mensagem mais clara não pode haver: estamos comprometidos a prolongar os horrores do século 20, simplesmente porque
nossa mentalidade se recusa a
sair dele.
Bem que desconfiava, em dezembro, que essa segunda-feira
chegaria. As pessoas telefonavam,
marcávamos compromissos e
chegávamos sempre à conclusão
de que era melhor esperar a passagem do ano. Nestas duas semanas nada se resolve, dizia eu, vamos jogar para 2000. Em alguma
parte do inconsciente, algo me dizia: o ano vai começar com muitos rabos de foguete.
Os foguetes explodiram nos céus
do réveillon, ficaram os rabos. Todo ano é assim, só que esse é redondo demais, e tudo o que é redondo demais acaba ganhando
essa dimensão mítica, como se
fosse um mandala.
Pode ser que essa idéia do redondo, do circular, reinstale debates eternos na história da humanidade. O Brasil inicia o ano
2000 com um grande tema na
agenda: a luta contra a miséria.
"Museu de novidades", como diria o Cazuza. Num brilhante ensaio sobre o socialismo, Isaiah
Berlin mostra que a denúncia da
miséria estava presente já no "Velho Testamento" e outros textos
sagrados. A idéia de que os recursos materiais são injustamente
distribuídos nos persegue desde o
início dos tempos e, já em Platão,
ficava bem claro que a busca da
riqueza obstrui o desenvolvimento de inúmeras qualidades humanas.
Talvez a diferença agora é que
necessitamos dar uma resposta
dentro de limites bem claros: não
há sociedade ideal, nem terra
prometida para se alcançar. No
entanto, é possível cavar um caminho aproveitando o carisma
da entrada do século.
Aqui no Rio, por exemplo, Brizola e Garotinho estão empenhados num interessante debate. Brizola acusa Garotinho de misturar
Igreja e Estado, apesar de todo o
sangue que a humanidade verteu
para separá-los.
Garotinho lembra a Brizola de
um compromisso eleitoral, porque seu parceiro estaria sofrendo
de amnésia. Brizola contesta: "Isso não é coisa de um verdadeiro
evangélico".
Que tal esta transcendente
questão para iniciar o ano: o que
é um verdadeiro evangélico? Usa
gravata ou só uma camisa esporte, fechada no colarinho? Acena a
Bíblia com a mão direita ou com
a mão esquerda? Promete a cura
da Aids, do homossexualismo ou
do lumbago?
Italo Calvino, nos textos para o
novo milênio, diz que o século 21
será leve. Aproveitemos então,
agora que acabaram as festas.
Vamos agradecer à La Ninã o
verão brando, a brisa marinha, as
noites de lua, o lancinante miado
dos gatos nos telhados de Copacabana. Mergulhada no oceano, La
Ninã fez o que pode para que este
ano não seja como os outros. Resta a parte que nos cabe, para desdobrar esse mito de três zeros.
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