São Paulo, quarta-feira, 03 de janeiro de 2001

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CRÍTICA

Coreógrafo não deixa ninguém indiferente

ESPECIAL PARA A FOLHA

"Teórica" e "ontológica" são as palavras de Jérôme Bel para definir sua coreografia "Le Dernier Spectacle" (O Último Espetáculo, de 1998), apresentada no Théâtre de la Ville/Les Abbesses, em Paris, no dia 20 de dezembro.
Desde seu primeiro espetáculo, "Nom Donné par l'Auteur" (Nome Dado pelo Autor, de 1994), e sobretudo "Jérôme Bel", do ano seguinte, Bel vem criando trabalhos de gênero inclassificável, nos quais dança e teatro são meios de refletir sobre a identidade, a representação e a autoria.
Espontâneo e avesso aos formalismos, Bel confronta sua própria imagem nos olhos da platéia. Os papéis do espectador e do intérprete são postos em xeque; e o espetáculo tira daí sua vitalidade.
São coreografias sem dança, muito próximas da decomposição analítica, produzidas dentro de um cenário mínimo.
Para ele, o que conta não é a emoção, nem o movimento no espaço, mas os vínculos entre o corpo e a linguagem.
A dança aqui é uma arte de idéias, mas sempre com acentos de humor.
Nessa sua quarta peça, "Le Dernier Spectacle", ele utiliza citações e variações em série, contestando as pretensões de uma "arte de artistas".
Jérôme Bel entra no palco. Diz, em tom neutro: "Je suis Jérôme Bel" (Eu sou Jérôme Bel). Olha para o relógio de pulso. O alarme dispara um minuto depois e ele sai do palco.
Homem 2, vestido de tenista: "I am Andre Agassi" (Eu sou Andre Agassi). Joga tênis contra o paredão do fundo do palco. Uma, duas, três, quatro bolas. Recolhe todas. Repete. Sai do palco.
Homem 3, de malha preta e adaga: "I am Hamlet"... e assim por diante.
Os esquetes vão se sucedendo, com sua graça absurda. Até a mulher que "é" Susanne Linke (coreógrafa alemã) dar início à sequência de solos verdadeiramente dançados (e bem dançados).
Não há como descrever o espetáculo inteiro. Basta dizer que todos que "são" alguém depois deixarão de sê-lo. "Je ne suis pas Jérôme Bel" (Não sou Jérôme Bel), "I am not André Agassi" (Não sou Andre Agassi) etc.
Quase nenhum dos componentes habituais de um espetáculo está presente.
Apresentação, textualidade, cenário, técnicas e artifícios são reduzidos, peça por peça. O palco é vazio, restando somente um microfone na frente, luz de serviço e laterais do palco pretas.
Talvez o efeito do espetáculo seja desproporcional à substância. Mas, no mínimo, e com o mínimo, Jérôme Bel não deixa ninguém indiferente.
Nesta nossa época do empréstimo generalizado, do "copiar e colar" e das conexões multiplicadas, Bel incorpora a seu trabalho um trecho de Susanne Linke.
A representação múltipla desse solo pelos quatro bailarinos, um depois do outro, vira um jogo de variações.
E a repetição, nesse contexto, nos leva a questionar o que é a interpretação e o que são os estratagemas da representação.
Não se trata de um espetáculo frio: a linguagem de aparições e desaparições se desdobra com cargas de humor.
Em "Le Dernier Spectacle", a prática da reciclagem nega a mera proliferação, que só poderia esvaziar, pouco a pouco, o objeto.
Ator e criador do nosso tempo, utiliza o campo coreográfico "como um espaço aberto, uma forma de entendimento que não se limita à dança". Cabe ao espectador preencher, então, os espaços vazios -e interpretá-los. (IB)

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