São Paulo, quarta-feira, 03 de janeiro de 2001

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DANÇA

Coreógrafo francês, com peças em cartaz em vários teatros de seu país, estréia este mês "The Show Must Go On"

Não quero dominar a platéia, não a seduzo, afirma Jérôme Bel

INÊS BOGÉA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Descoberto no Théâtre de la Bastille, faz cinco anos, o nome de Jérôme Bel está hoje incluído nas temporadas mais prestigiosas da dança contemporânea.
Programado para a abertura da temporada do Centro Pompidou e tendo se apresentando depois no C.N.D. (Centro Nacional de Dança) com "Nom Donné par l'Auteur" (1994, sua primeira coreografia), ele está também em cartaz, em teatros diferentes da França, até fevereiro, com três outros espetáculos. E este mês estréia uma nova coreografia: "The Show Must Go On", no Théâtre de la Ville.
Ex-intérprete dos mais variados coreógrafos franceses, como Bouvier, Obadia e Caterina Sagna, Jérôme Bel foi também assistente de Philippe Decouflé para a abertura dos Jogos Olímpicos em 1992.
Bel foi desenvolvendo uma "arte do pouco", num estilo refinado e cheio de humor. Ele rejeita a dança espetacular, teatral e estética dos anos 80, para centrar a atenção em uma crítica do olhar sobre o corpo e o espetáculo.
Seus pronunciamentos provocadores (como olhar fixamente para a platéia ou urinar no palco) põem em questão os hábitos codificados de leitura. Em muitos casos, a noção de leitura e de código está em cena, como em "Shirtologie" (Camisetologia), que faz da camiseta ("t-shirt") um elemento primário da representação.
Leia a seguir a entrevista que Bel concedeu à Folha, no intervalo entre os vários espetáculos, por e-mail, de Paris.

Folha - Seu trabalho se situa num universo característico e muito particular. Como você o descreveria (se é que pode ser descrito)?
Jérôme Bel -
Posso tentar descrevê-lo. Eu achava que o meu trabalho tinha a aparência mais normal, mas fui me dando conta, à medida que os espetáculos foram se sucedendo, de que na verdade não é e incomoda muita gente. Ontem mesmo (22 de dezembro), no Théâtre de la Ville/ Les Abbesses, não deu para escutar o final do trabalho, porque a platéia não parava de gritar. Queriam o dinheiro de volta.
Meu trabalho, então, se baseia em sua própria fraqueza. O que significa que eu não quero dominar a platéia. Não uso nenhuma sedução. Tento dar tempo e espaço para que a platéia pense a respeito. É dialético, não ideológico. Acima de tudo, é um trabalho de reflexão, mais do que de entretenimento. Lamento muito, mas é o único jeito para mim.

Folha - O que dá início a um novo trabalho? Você tem alguma fonte recorrente de inspiração?
Bel -
Cada caso é um caso. Às vezes se trata de uma encomenda, o que me obriga a ter um espetáculo montado até determinada hora e para um determinado contexto. Às vezes, o "trabalho" simplesmente me vem, mas nunca lembro como e quando, o que é uma pena!
Às vezes tenho algum projeto ao qual penso me dedicar por dois anos e, depois de duas horas, eu me dou conta de que tenho um outro espetáculo para fazer, que está virtualmente pronto... portanto já posso tirar férias.

Folha - Você menciona a semiologia como uma área de interesse que pode lhe auxiliar a pensar sobre corpos e signos. Há algum autor ou texto que tenha sido especialmente importante para você?
Bel -
Li quase todos os textos de Roland Barthes, que foi muitíssimo importante para mim. Emprego a metodologia que Barthes criou para analisar a linguagem, transportada para o movimento e o corpo, para a dança e o teatro. Outro autor de importância para mim foi Bourdieu, com "As Regras da Arte" e "A Distinção". Foucault também, com a "História da Sexualidade". Deleuze é outro grande estímulo.

Folha - O que seria das "t-shirts" sem "Shirtologie"? O que é uma "t-shirt" agora, depois de "Shirtologie"?
Bel -
Continuam sendo camisetas. Mas tanto eu quanto, espero, as platéias dessa que é a mais popular das minhas peças nos tornamos mais conscientes e "ativos" no mundo dos signos: toda e qualquer coisa tem um sentido e podemos usá-lo para nos expressarmos. Por exemplo, empregando a potência e as alienações do capitalismo a serviço de nosso próprio discurso liberador.

Folha - Como se pode entender a relação entre o bailarino/ator e a platéia nos seus trabalhos?
Bel -
A relação tem de ser tão igualitária quanto possível. Os atores estão fazendo seu trabalho de artista, que é tão necessário e socialmente útil quanto o trabalho de cada membro da platéia. A meu ver, a idéia do artista tende a ser superestimada, ao ponto de tratá-los como deuses.
Mas vamos deixar uma coisa clara. Não tenho intenção de produzir um trabalho ideológico. Só o que eu quero é expor, em cena, algum tipo de problematização. Mas há platéias que querem que eu lhes diga o que pensar. Pagaram por isso... E a vida, naturalmente, é muito mais fácil quando alguém lhe diz o que fazer. Eu chamo isso de totalitarismo!

Folha - Até aqui, você já criou seis peças. Elas estabelecem alguma sequência? Como diferem uma da outra?
Bel -
Parecem irmãs gêmeas. Tenho a sensação, às vezes, de que é o mesmo espetáculo, o tempo todo. Às vezes, são como irmãs numa família: uma é esperta, a outra engraçada, outra ainda é triste e delicada ou cruel e perversa. Mas gosto de todas, por suas diferentes qualidades e defeitos. Amor é isso: amar até os defeitos.

Folha - "The Show Must Go On" tem estréia marcada para este ano. O "show continua", então, mas como?
Bel -
Continua porque há quase 30 pessoas envolvidas e todas querem que aconteça. Elas me ajudam e são elas que querem que eu faça o espetáculo.

Folha - Corpos virtuais, estar aqui e ali ao mesmo tempo, "entrar" num site: o que um coreógrafo pode fazer com esse tipo de presença evanescente?
Bel -
Tenho pensado muito nesse assunto e estou muito animado com as possibilidades abertas pelas novas mídias. Tenho um projeto de criar um trabalho para a Internet, no ano que vem. Vejo mais e mais coisas interessantes na rede.

Folha - Há algum(ns) artista(s) de quem você se sinta especialmente próximo? De quem você não perderia uma estréia?
Bel -
Sinto-me muito próximo de um bom número de artistas, como Xavier Le Roy, Jonathan Burrows, Alain Platel, Raimund Hoghe, Pina Bausch, La Ribot, Claudia Triozzi, Boris Charmatz, Forced Entertainement, Peter Sellars, Maurice Dantec, Michel Houellebecq, Pierre Huyghe, Claude Closky, Maurizio Cattelan, Douglas Gordon, Caetano Veloso, Manu Chao, Amália Rodrigues, Madonna, William Forsythe, Anton Tchecov, Marcel Proust, Raymond Roussel... Por hoje basta. Deixe eu lhe dizer uma coisa: eu adoro a arte.

Folha - Há alguma chance de você vir de novo ao Brasil em 2001 ("Nom Donné par l'Auteur" veio ao Rio e a São Paulo, em 99)?
Bel -
Estou pensando na idéia, porque recebi convites de Rosana Paula da Cunha (do Sesc) e de Lia Rodrigues (que dirige o Panorama de Dança, no Rio). Mas tenho de pensar com calma. Espero poder, porque simplesmente adoro estar no Brasil. Sinto-me muito bem aí. (Em português:) Tenho muita saudade do Brasil. Adeus.


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