São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2001

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TEATRO/CRÍTICA

Andarilhos líricos de "Cachorro!" uivam realidade antipoética

KIL ABREU
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os cães sem dono que uivam no porão do teatro Maria Della Costa nas noites de quarta são tipos desconcertantes, em uma história que chega à fronteira do absurdo.
Embaixo da ponte, à beira de um rio fétido, quatro sem-teto aguardam a passagem de um cadáver, enquanto desfilam a existência vagabunda em diálogos grotescos, mas de grande apelo poético. No entanto o espectador não deve esperar um tratado sociológico ou um suspiro lírico sobre a vida dos deserdados.
Os andarilhos de "Cachorro!" não articulam discursos que não pareçam sair da sua miséria existencial, e a poesia das cenas, quando existe, é afirmada para logo em seguida ser jogada no lixo pelo personagem de Ênio Gonçalves, uma espécie de filósofo da sarjeta.
É inevitável lembrar marginais de Beckett ou de Plínio Marcos. Mas o que torna os personagens de "Cachorro!" interessantes é que o autor os cria em uma zona não completamente realista, tornando-os donos de uma dor cheia de lirismo e também de humor.
Diálogos ágeis sofrem a intervenção de citações, que são assimiladas organicamente.
Se a dramaturgia consegue causar esse saudável estranhamento, não se pode dizer o mesmo da maior parte das soluções cênicas. Ficamos com a impressão de que a encenação confia demais no texto e prejudica-o, por não corresponder a ele em inventividade.
Um outro elemento que sofre dessa mesma falta é o espaço da representação. O espaço não fala por si e pede alguma mobilização para que possa dialogar melhor com os atores e com o texto.
Entre os intérpretes, é o próprio Gonçalves quem vive os melhores momentos. Apropria-se sem vacilos da fala dura e lírica do "homeless" que representa. Na composição dos demais personagens, o resultado não é o mesmo, sobretudo quando os atores apelam para a caricatura vocal (no caipira de Hermínio Portella, por exemplo). Mara Faustino (Maria) sai-se melhor ao evitar esse caminho. Em tipos já tão marcantes, parece que não há lugar para maneirismos.
"Cachorro!" pode ser visto como uma sensível alegoria. Vale sobretudo pela lírica compreensão de certa realidade -esta sim, em tudo antipoética.


Cachorro!
   
Texto e direção: Ênio Gonçalves
Com: Ênio Gonçalves, Mara Faustino, Hermínio Portella e Emerson Ribeiro
Onde: porão do teatro Maria Della Costa (r. Paim, 72, tel. 0/xx/11/256-9115)
Quando: quartas-feiras, às 21h Quanto: R$ 10






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