São Paulo, sábado, 03 de fevereiro de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"FAZER UM FILME"

Obra radiografa auto-ironia do universo felliniano

JOSÉ GERALDO COUTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Alberto Moravia escreveu certa vez que Federico Fellini (1920-93) filmava o passado como se fosse presente e o presente como se fosse passado.
Mas não são apenas passado e presente que Fellini entrelaça, transfundindo um no outro. Em seu cinema são também vasos comunicantes o sagrado e o profano, o real e o fantástico, o catolicismo e o paganismo, a lucidez e a loucura, a província e a metrópole, a celebração dionisíaca e a crítica feroz.
O livro "Fazer um Filme", que compila textos do diretor sobre sua vida e seu ofício, ilumina como nenhum outro o processo de formação e desenvolvimento dessa obra singular.
É um volume fragmentário e heterogêneo, em que há desde o prefácio a um livro sobre Rimini (terra natal do cineasta) até uma entrevista à revista "Playboy", passando pela apresentação de roteiros de filmes específicos, como "Satyricon" e "Roma".
Em todos esses escritos reencontramos o frescor, a auto-ironia, o humor iconoclasta e a profusão de imagens que caracterizam o cinema do diretor.
Mentiroso confesso, Fellini coloca sob suspeição suas próprias lembranças e opiniões. Nesse fluxo em que se misturam a memória e a fantasia, é possível identificar alguns dados biográficos essenciais à compreensão do chamado universo felliniano.
As lembranças da infância e adolescência em Rimini, por exemplo, não apenas esclarecem "Amarcord", mas também iluminam a gênese de características permanentes da obra de Fellini.
Para citar algumas: o gosto pelas formas populares de expressão (circo, quadrinhos, fotonovela), a nostalgia do mar, o ódio à autoridade, a relação ambígua com o catolicismo, a sensualidade opressiva e polimorfa.
A juventude em Roma, dos 18 aos 25 anos, significou para o cineasta a descoberta de muitas coisas: o caos urbano, a política, o teatro de variedades, o cinema, o paganismo pré-cristão.
Mas Fellini, obviamente, não é apenas "produto de seu meio". O que o tornou grande foi o modo como transfigurou esse magma de vivências e recordações numa personalíssima representação artística do mundo.
É possível até fazer a leitura oposta: ao falar de seu passado, o artista Fellini o desfigura de acordo com sua sensibilidade, sua inteligência e sua fantasia.
Seja como for, "Fazer um Filme" permite acompanhar "de dentro" a evolução do cinema felliniano, do "realismo poético" dos primeiros filmes à extravagância crescentemente visionária e auto-reflexiva dos últimos.
Capítulos específicos são dedicados a "acertos de contas" de Fellini com certos tópicos centrais: Giulietta Masina, a TV, os palhaços de circo, Roma etc.
Para quem procura reflexões do cineasta sobre técnica e linguagem cinematográfica, o livro tem a oferecer poucas passagens, mas preciosas: numa delas o diretor fala sumariamente sobre a cor, em outra, sobre as diferenças de ritmo e enquadramento entre a televisão e o cinema.
Quem estiver interessado em anedotas de bastidores e episódios paralelos aos filmes encontrará, ao contrário, farto material.
Fiquemos com um exemplo. A atriz Ana Magnani havia pedido a Fellini que bolasse um filme a ser estrelado por ela e dirigido por Rosselini.
Dias depois, Fellini descreveu-lhe a cena em que um ator playboy, por desfastio e para se vingar da amante, leva uma prostituta para casa. Quando estão prestes a fazer sexo, chega a amante, e a prostituta, escondida no banheiro, acompanha por uma fresta a noite de amor do casal.
"La Magnani" ficou ofendida: "Você acha que alguém como eu se deixa trancar no banheiro por um ator babaca?". A cena acabou sendo uma das sequências centrais de "Noites de Cabiria", protagonizada por uma insubstituível Giulietta Masina.
Histórias desse tipo o livro traz aos montes. Traz também a admiração de Fellini por Jung e por Picasso, sua fascinação pelo espiritismo, sua curiosidade pelas filosofias orientais, seu anseio vão de "tornar visível o invisível".
Pleno de imagens, com um linguajar coloquial muito pessoal, não é um livro fácil de traduzir. Apesar do esforço, a tradutora cometeu alguns deslizes mais ou menos graves, como trocar Leopardi (o poeta) por "Os Leopardos", ou inverter o sentido da frase: "Para mim, o cinema é imagem, e a luz é seu fator fundamental" (ficou "a luz não é o fator fundamental").
Em outra passagem, o traje faustoso de Visconti virou "espalhafatoso", o que é bem diferente. Em outra, "um programa nunca abandonado" virou "um programa abandonado".
Faltou espaço para falar do belo prefácio de Italo Calvino, "Autobiografia de um Espectador", que rememora as relações do escritor com o cinema americano: não tem nada a ver com Fellini.


Fazer um Filme
    
Autor: Federico Fellini
Tradução: Monica Braga
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 30 (252 págs.)




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