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LIVROS/LANÇAMENTOS
"FAZER UM FILME"
Obra radiografa auto-ironia do universo felliniano
JOSÉ GERALDO COUTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
Alberto Moravia escreveu
certa vez que Federico Fellini
(1920-93) filmava o passado como
se fosse presente e o presente como se fosse passado.
Mas não são apenas passado e
presente que Fellini entrelaça,
transfundindo um no outro. Em
seu cinema são também vasos comunicantes o sagrado e o profano, o real e o fantástico, o catolicismo e o paganismo, a lucidez e a
loucura, a província e a metrópole, a celebração dionisíaca e a crítica feroz.
O livro "Fazer um Filme", que
compila textos do diretor sobre
sua vida e seu ofício, ilumina como nenhum outro o processo de
formação e desenvolvimento dessa obra singular.
É um volume fragmentário e
heterogêneo, em que há desde o
prefácio a um livro sobre Rimini
(terra natal do cineasta) até uma
entrevista à revista "Playboy",
passando pela apresentação de
roteiros de filmes específicos, como "Satyricon" e "Roma".
Em todos esses escritos reencontramos o frescor, a auto-ironia, o humor iconoclasta e a profusão de imagens que caracterizam o cinema do diretor.
Mentiroso confesso, Fellini coloca sob suspeição suas próprias
lembranças e opiniões. Nesse fluxo em que se misturam a memória e a fantasia, é possível identificar alguns dados biográficos essenciais à compreensão do chamado universo felliniano.
As lembranças da infância e
adolescência em Rimini, por
exemplo, não apenas esclarecem
"Amarcord", mas também iluminam a gênese de características
permanentes da obra de Fellini.
Para citar algumas: o gosto pelas
formas populares de expressão
(circo, quadrinhos, fotonovela), a
nostalgia do mar, o ódio à autoridade, a relação ambígua com o
catolicismo, a sensualidade
opressiva e polimorfa.
A juventude em Roma, dos 18
aos 25 anos, significou para o cineasta a descoberta de muitas coisas: o caos urbano, a política, o
teatro de variedades, o cinema, o
paganismo pré-cristão.
Mas Fellini, obviamente, não é
apenas "produto de seu meio". O
que o tornou grande foi o modo
como transfigurou esse magma
de vivências e recordações numa
personalíssima representação artística do mundo.
É possível até fazer a leitura
oposta: ao falar de seu passado, o
artista Fellini o desfigura de acordo com sua sensibilidade, sua inteligência e sua fantasia.
Seja como for, "Fazer um Filme" permite acompanhar "de
dentro" a evolução do cinema felliniano, do "realismo poético"
dos primeiros filmes à extravagância crescentemente visionária
e auto-reflexiva dos últimos.
Capítulos específicos são dedicados a "acertos de contas" de Fellini com certos tópicos centrais:
Giulietta Masina, a TV, os palhaços de circo, Roma etc.
Para quem procura reflexões do
cineasta sobre técnica e linguagem cinematográfica, o livro tem
a oferecer poucas passagens, mas
preciosas: numa delas o diretor
fala sumariamente sobre a cor,
em outra, sobre as diferenças de
ritmo e enquadramento entre a
televisão e o cinema.
Quem estiver interessado em
anedotas de bastidores e episódios paralelos aos filmes encontrará, ao contrário, farto material.
Fiquemos com um exemplo. A
atriz Ana Magnani havia pedido a
Fellini que bolasse um filme a ser
estrelado por ela e dirigido por
Rosselini.
Dias depois, Fellini descreveu-lhe a cena em que um ator playboy, por desfastio e para se vingar
da amante, leva uma prostituta
para casa. Quando estão prestes a
fazer sexo, chega a amante, e a
prostituta, escondida no banheiro, acompanha por uma fresta a
noite de amor do casal.
"La Magnani" ficou ofendida:
"Você acha que alguém como eu
se deixa trancar no banheiro por
um ator babaca?". A cena acabou
sendo uma das sequências centrais de "Noites de Cabiria", protagonizada por uma insubstituível Giulietta Masina.
Histórias desse tipo o livro traz
aos montes. Traz também a admiração de Fellini por Jung e por Picasso, sua fascinação pelo espiritismo, sua curiosidade pelas filosofias orientais, seu anseio vão de
"tornar visível o invisível".
Pleno de imagens, com um linguajar coloquial muito pessoal,
não é um livro fácil de traduzir.
Apesar do esforço, a tradutora cometeu alguns deslizes mais ou
menos graves, como trocar Leopardi (o poeta) por "Os Leopardos", ou inverter o sentido da frase: "Para mim, o cinema é imagem, e a luz é seu fator fundamental" (ficou "a luz não é o fator fundamental").
Em outra passagem, o traje
faustoso de Visconti virou "espalhafatoso", o que é bem diferente.
Em outra, "um programa nunca
abandonado" virou "um programa abandonado".
Faltou espaço para falar do belo
prefácio de Italo Calvino, "Autobiografia de um Espectador", que
rememora as relações do escritor
com o cinema americano: não
tem nada a ver com Fellini.
Fazer um Filme
Autor: Federico Fellini
Tradução: Monica Braga
Editora: Civilização Brasileira
Quanto: R$ 30 (252 págs.)
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