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O que levamos para uma viagem de seis anos
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Querido diário: www.huygens.com. Acabou, finalmente.
Nova realidade. Seis anos. Cinquenta e seis mais seis, 62. Terei isso em 2002. Décadas de
oposição. Longa travessia do
deserto, com direito a caneladas dos companheiros de caravana.
De uma coisa estou livre: posar fazendo o V da vitória no
plenário. Ah, os escoteiros.
Desde menino, zombávamos
deles. Na mesma hora estava
morrendo Callado. Lembro-me de um personagem,
Nando talvez, diante da mala
vazia, armário aberto, se perguntando: o que é que se leva
para o Xingu?
Callado trabalhava num andar superior, escrevendo editoriais. Descia para conversar,
indicava livros, esclarecia. O
velho prédio da Rio Branco já
não existe mais. Um dia os estudantes picharam no asfalto:
Condessa, rá, rá, rá.
Embora à distância, travamos juntos a luta pelo morro
Dois Irmãos. Ele amava aquela
paisagem. Não suportava a
idéia de que fosse construído
ali mais um grande hotel, sepultando os vestígios da Mata
Atlântica, desfigurando a imagem essencial do Rio.
Para mim, o Dois Irmãos é
aquela paisagem mais o olhar
de Callado que a mantém de
pé, diante do mar, encravada
na terra.
O que é que se leva para o
Xingu, para uma viagem de
seis anos? Não penso assim, em
longos prazos. Segurança para
mim é o primeiro dia de exílio,
na Argélia, na Argentina. É o
momento em que você, no
abrigo, esquece um pouco as
confusões que o levaram até
ali e pensa apenas em dormir,
sabendo que no dia seguinte
haverá um café da manhã, sol,
pássaros cantando.
Seis anos. Até que ponto essa
previsibilidade é apenas miragem? Até que ponto ela pode
fazer mal, entristecer?
Há uma nova realidade, ausente na época em que Nando
arrumava a mala para o Xingu: a realidade virtual. Somos
anfíbios, vivemos em dois
mundos, é assustador sentir
como, às vezes, tornam-se distantes um do outro.
Isso torna os próximos seis
anos imprevisíveis. E mais
misterioso ainda o gesto do V
da vitória, torcida de futebol
chegando ao estádio vazio.
Querido diário, hoje saiu o
livro das profecias. O que escrevi nele? Perguntas: o que fazer para evitar o destino dos
dinossauros? O que é ser mamífero, em termos de país, como adaptar-se a um mundo
em violenta transformação?
Será que vamos deixar a promessa de reforma agrária romper um novo século? Haverá
telefone? Darão linha, por acaso? E o não transporte, a idéia
de circular, menos fisicamente,
já se anuncia no horizonte?
Saíram dois livros nos EUA
sobre carro a eletricidade e a
história dos bastidores das decisões da GM. Se a Califórnia
não tivesse saltado na frente,
fixando um prazo e uma cota
para carros não poluidores, o
esforço empresarial não teria
se desdobrado.
É um caso de relativo domínio sobre o mercado, desviando-o para que se afaste de sua
pulsão destrutiva.
Isso é possível hoje? Se for, temos de levar na mala para o
Xingu. Faz falta numa jornada
de seis anos.
Um velho jornalista se aposentou e alguém lhe perguntou
quais eram seus planos. Ele
disse com uma ponta de impaciência: você quer estragar
meu tempo com planos?
Não gosto nem de saber sexo
de criança, antecipadamente.
No entanto, agora, vou conviver com uma certa dose de antevisão nacional. É o novo
exercício: raciocinar com esse
espaço de tempo.
O que vamos fazer depois de
2002? Até os amigos alemães,
que planejam tudo com uma
confortável antecedência,
achariam exagerada essa pergunta.
Ao sair, ouvi gente cantando
o hino nacional, e depois gritavam ``u terêrê''. Há apenas alguns anos a polícia corria
atrás dos funkeiros, que gritavam ``u terêrê''. Não deixa de
ser animador vê-los cantar ``u
terêrê''. Sei que não é a primeira vez que o proibido ressurge
nos lábios dos fazedores da lei.
Não previ, há alguns anos,
que os escoteiros tardios, fazendo V, fossem cantar ``u terêrê''. Essas surpresas acabam
me animando a fechar os olhos
e gritar: que vengam los toros.
Se possível, um pouco mais rápido.
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