São Paulo, segunda, 3 de fevereiro de 1997.

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O que levamos para uma viagem de seis anos

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha

Querido diário: www.huygens.com. Acabou, finalmente. Nova realidade. Seis anos. Cinquenta e seis mais seis, 62. Terei isso em 2002. Décadas de oposição. Longa travessia do deserto, com direito a caneladas dos companheiros de caravana.
De uma coisa estou livre: posar fazendo o V da vitória no plenário. Ah, os escoteiros. Desde menino, zombávamos deles. Na mesma hora estava morrendo Callado. Lembro-me de um personagem, Nando talvez, diante da mala vazia, armário aberto, se perguntando: o que é que se leva para o Xingu?
Callado trabalhava num andar superior, escrevendo editoriais. Descia para conversar, indicava livros, esclarecia. O velho prédio da Rio Branco já não existe mais. Um dia os estudantes picharam no asfalto: Condessa, rá, rá, rá.
Embora à distância, travamos juntos a luta pelo morro Dois Irmãos. Ele amava aquela paisagem. Não suportava a idéia de que fosse construído ali mais um grande hotel, sepultando os vestígios da Mata Atlântica, desfigurando a imagem essencial do Rio.
Para mim, o Dois Irmãos é aquela paisagem mais o olhar de Callado que a mantém de pé, diante do mar, encravada na terra.
O que é que se leva para o Xingu, para uma viagem de seis anos? Não penso assim, em longos prazos. Segurança para mim é o primeiro dia de exílio, na Argélia, na Argentina. É o momento em que você, no abrigo, esquece um pouco as confusões que o levaram até ali e pensa apenas em dormir, sabendo que no dia seguinte haverá um café da manhã, sol, pássaros cantando.
Seis anos. Até que ponto essa previsibilidade é apenas miragem? Até que ponto ela pode fazer mal, entristecer?
Há uma nova realidade, ausente na época em que Nando arrumava a mala para o Xingu: a realidade virtual. Somos anfíbios, vivemos em dois mundos, é assustador sentir como, às vezes, tornam-se distantes um do outro.
Isso torna os próximos seis anos imprevisíveis. E mais misterioso ainda o gesto do V da vitória, torcida de futebol chegando ao estádio vazio.
Querido diário, hoje saiu o livro das profecias. O que escrevi nele? Perguntas: o que fazer para evitar o destino dos dinossauros? O que é ser mamífero, em termos de país, como adaptar-se a um mundo em violenta transformação? Será que vamos deixar a promessa de reforma agrária romper um novo século? Haverá telefone? Darão linha, por acaso? E o não transporte, a idéia de circular, menos fisicamente, já se anuncia no horizonte?
Saíram dois livros nos EUA sobre carro a eletricidade e a história dos bastidores das decisões da GM. Se a Califórnia não tivesse saltado na frente, fixando um prazo e uma cota para carros não poluidores, o esforço empresarial não teria se desdobrado.
É um caso de relativo domínio sobre o mercado, desviando-o para que se afaste de sua pulsão destrutiva.
Isso é possível hoje? Se for, temos de levar na mala para o Xingu. Faz falta numa jornada de seis anos.
Um velho jornalista se aposentou e alguém lhe perguntou quais eram seus planos. Ele disse com uma ponta de impaciência: você quer estragar meu tempo com planos?
Não gosto nem de saber sexo de criança, antecipadamente. No entanto, agora, vou conviver com uma certa dose de antevisão nacional. É o novo exercício: raciocinar com esse espaço de tempo.
O que vamos fazer depois de 2002? Até os amigos alemães, que planejam tudo com uma confortável antecedência, achariam exagerada essa pergunta.
Ao sair, ouvi gente cantando o hino nacional, e depois gritavam ``u terêrê''. Há apenas alguns anos a polícia corria atrás dos funkeiros, que gritavam ``u terêrê''. Não deixa de ser animador vê-los cantar ``u terêrê''. Sei que não é a primeira vez que o proibido ressurge nos lábios dos fazedores da lei.
Não previ, há alguns anos, que os escoteiros tardios, fazendo V, fossem cantar ``u terêrê''. Essas surpresas acabam me animando a fechar os olhos e gritar: que vengam los toros. Se possível, um pouco mais rápido.

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