São Paulo, terça, 3 de fevereiro de 1998

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Discussões filosóficas deixam gabinete de marfim com a volta do Café Filosófico, fórum de debates que reúne de motoristas a engenheiros
A filosofia desce da torre

Niels Andreas/Folha Imagem
Panorama do Café Filosófico, no mezanino da livraria Cultura


CASSIANO ELEK MACHADO
da Reportagem Local

Quando um recipiente de água começa a borbulhar, é porque a água dentro dele recebeu calor suficiente.
Quando motoristas, cabeleireiros, office boys, médicos e outras dezenas de estratos da sociedade passam a se reunir com regularidade para filosofar, é porque as idéias dessa sociedade estão suficientemente aquecidas.
Hoje uma amostra consistente de São Paulo volta a entrar em ebulição, ao mesmo tempo em que quatro litros de água com café. É a reinauguração do Café Filosófico da livraria Cultura, fórum de debates filosóficos que chegou a reunir 400 pessoas por sessão em meados de 1997, quando foi inaugurado.
A professora de filosofia da Universidade de São Paulo Olgária Matos, que capitaneia a iniciativa ao lado da assessora de comunicação da livraria, Sônia Goldfeder, diz que por trás do sucesso do Café, que reuniu quase 10 mil pessoas em 1997, estão dois fatores.
Por um lado, ela enxerga uma vasta carência na formação humanista do brasileiro. Por outro, vislumbra a "falência na crença no progresso e na ciência".
Por isso, a filosofia desce da "torre de marfim" em direção à praça pública.
Ela não escorrega pelas tranças de Rapunzel, desce escorada nas barbas de Sócrates. Olgária diz que tomou o patrono da filosofia "como emblema". "Sócrates se dirigia a todos que o interpelavam a caminho da praça pública."
O cabeleireiro Denis Dias Ferreira, um dos frequentadores assíduos do Café, fala na mesma língua de Olgária. Para ele, "a filosofia estava enclausurada na universidade. Era um patrimônio da humanidade restrito a grupelhos. Com o Café, a filosofia volta para a praça pública".
O professor Franklin Leopoldo e Silva, da Universidade de São Paulo, diz que essa caminhada para a ágora, nome grego da praça pública, é ditada pelo ritmo da "pobreza cultural do nosso tempo". "A vida cotidiana não dá espaço para a discussão dela própria", opina.
A "demanda por alimento espiritual", que faz roncar os cérebros nacionais, de acordo com o professor de filosofia da Unicamp Roberto Romano, também tem como ingrediente a "burocratização da universidade".
O professor conta que membros do Departamento de Filosofia da Unicamp decidiram há alguns meses promover cursos noturnos e gratuitos de extensão universitária para levar a reflexão de temas cotidianos para a comunidade não universitária. Segundo ele, a iniciativa foi abortada pela reitoria da universidade, que insistiu que os cursos fossem pagos.
O sucesso dos cafés filosóficos, para Romano, manifesta essa "esclerose da universidade".
É "livre de grilhões" que a filosofia deve ser exercida. Essa é a opinião de Alfio Becário, um dos "filósofos-cafeeiros" da livraria Cultura e redator-chefe da revista "Globo Ciência". "Voltar a estudar filosofia dessa forma livre é o 'sinal dos tempos'."
Luiz Mariano Américo de Souza, motorista de uma empresa de informática, explica que "nós, os filósofos, somos idealistas. Meus maiores ódios são a gravata, o cartão de ponto, a televisão".
Sem receios em se considerar um filósofo, Luiz Mariano conta que, no Café, "o povo discute filosofia 'em vulgar'. É uma coisa mais genuína, empírica".
Outro que não tem medo de filosofar em português, o engenheiro Mário Édson de Almeida, diz que as discussões do Café não são embebidas em citações.
Como o Café Filosófico só acontece na primeira e na terceira terça-feira do mês, Mário Édson é um dos adeptos dos "cafés do B", reuniões organizadas em outros dias da semana por frequentadores do café oficial, que começa às 19h30 e deve terminar antes das 22h30, horário-limite que a livraria pode funcionar.



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