São Paulo, terça, 3 de fevereiro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Livro amontoa clichês sobre Nietzsche

SCARLETT MARTON
especial para a Folha

Filosofia se diz de muitas maneiras. Um livro de especialista, uma tese de doutorado, um texto didático, um escrito de divulgação são todos bem-vindos, desde que tenham qualidade. Cada um cumpre a sua função e, do seu jeito, fala de filosofia. Merece ser bem acolhido, se for um trabalho sério.
Este não é o caso, porém, de "Nietzsche em 90 Minutos". À primeira vista bem-humorado, o livro revela, aos poucos, os seus muitos preconceitos.
É de forma estereotipada que fala da vida estudantil de Nietzsche ou de suas visitas aos bordéis, de seus familiares em Naumburgo ou da figura de Wagner em Tribschen. É de modo superficial que julga seus principais livros. Quando lançou "Humano, Demasiado Humano", os admiradores do filósofo "achavam que o que ele fazia não era filosofia e estavam certos" (pág. 31). Em "Assim Falava Zaratustra", "que não é legível senão para os adolescentes", "a filosofia, como tal, é quase negligenciável" (pág. 35).
E mais: é de maneira simplista que avalia conceitos centrais do pensamento nietzschiano. Em julho de 1870, quando eclodiu a Guerra Franco-Prussiana, ao ver passar em Frankfurt as tropas da cavalaria, Nietzsche criou o conceito de vontade de potência. E foi sua debilidade física, aliada à fragilidade de sua saúde, que o levou mais tarde, por um mecanismo de compensação psicológica, a conceber a noção do além-do-homem. (É esta a tradução mais adequada para o termo alemão "Übermensch", e não super-homem como consta no livro). Afinal, "as melhores idéias filosóficas de Nietzsche mal são dignas desse nome" (pág. 9).
Contudo, o autor parece reconhecer que o filósofo fez um bom trabalho: desmascarou valores, derrubou ídolos, demoliu os alicerces da nossa civilização. Insiste em afirmar que "o verdadeiro filosofar de Nietzsche é tão brilhante, persuasivo e incisivo quanto qualquer outro antes ou depois dele" (p. 10) -o que leva a neutralizar a virulência das idéias do filósofo; bem mais: leva a banalizar o trabalho de reflexão desenvolvido por mais de 2.000 anos.
Mas o autor parece atento às apropriações indevidas que nazistas, fascistas e anti-semitas fizeram do pensamento nietzschiano. Contesta que existam, nos textos, elementos que possam justificá-las. Isso não o impede, porém, de afirmar que a vontade de potência "é incontestavelmente a maior obra de Nietzsche" (pág. 43), apesar de este livro estar na base mesma dessas apropriações.
Não impede, inclusive, de extrair, sem critério, passagens dos escritos do filósofo, a despeito de terem sido os recortes arbitrários em sua obra responsáveis pela deturpação de suas idéias.
Talvez sejam os livros introdutórios os mais trabalhosos de elaborar. Ao contrário do que se supõe, eles exigem do autor conhecimento do assunto, acuidade para articular idéias, perspicácia para selecionar problemas -e, ainda, o tom adequado para falar ao público, com rigor e simplicidade, das questões mais complexas.
É, pois, um desserviço que "Nietzsche em 90 Minutos" presta ao público. E isso talvez nem mesmo se deva à má-fé do autor; é bem provável que resulte de sua ignorância. De forma sub-reptícia e insidiosa, ele constrói uma imagem do filósofo que mais se aproxima de um clichê. Afinal, se teve algum contato com as obras de Nietzsche, com elas não deve ter gasto mais de 90 minutos.


Scarlett Marton é professora no departamento de filosofia da Universidade de São Paulo e autora de "Nietzsche, das Forças Cósmicas aos Valores Humanos" (Brasiliense), entre outros.



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.