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Livro amontoa clichês sobre Nietzsche
SCARLETT MARTON
especial para a Folha
Filosofia se diz de muitas maneiras. Um livro de especialista, uma
tese de doutorado, um texto didático, um escrito de divulgação são
todos bem-vindos, desde que tenham qualidade. Cada um cumpre
a sua função e, do seu jeito, fala de
filosofia. Merece ser bem acolhido, se for um trabalho sério.
Este não é o caso, porém, de
"Nietzsche em 90 Minutos". À
primeira vista bem-humorado, o
livro revela, aos poucos, os seus
muitos preconceitos.
É de forma estereotipada que fala da vida estudantil de Nietzsche
ou de suas visitas aos bordéis, de
seus familiares em Naumburgo ou
da figura de Wagner em Tribschen. É de modo superficial que
julga seus principais livros. Quando lançou "Humano, Demasiado
Humano", os admiradores do filósofo "achavam que o que ele fazia não era filosofia e estavam certos" (pág. 31). Em "Assim Falava
Zaratustra", "que não é legível
senão para os adolescentes", "a
filosofia, como tal, é quase negligenciável" (pág. 35).
E mais: é de maneira simplista
que avalia conceitos centrais do
pensamento nietzschiano. Em julho de 1870, quando eclodiu a
Guerra Franco-Prussiana, ao ver
passar em Frankfurt as tropas da
cavalaria, Nietzsche criou o conceito de vontade de potência. E foi
sua debilidade física, aliada à fragilidade de sua saúde, que o levou
mais tarde, por um mecanismo de
compensação psicológica, a conceber a noção do além-do-homem. (É esta a tradução mais adequada para o termo alemão
"Übermensch", e não super-homem como consta no livro). Afinal, "as melhores idéias filosóficas de Nietzsche mal são dignas
desse nome" (pág. 9).
Contudo, o autor parece reconhecer que o filósofo fez um bom
trabalho: desmascarou valores,
derrubou ídolos, demoliu os alicerces da nossa civilização. Insiste
em afirmar que "o verdadeiro filosofar de Nietzsche é tão brilhante, persuasivo e incisivo quanto
qualquer outro antes ou depois
dele" (p. 10) -o que leva a neutralizar a virulência das idéias do
filósofo; bem mais: leva a banalizar o trabalho de reflexão desenvolvido por mais de 2.000 anos.
Mas o autor parece atento às
apropriações indevidas que nazistas, fascistas e anti-semitas fizeram do pensamento nietzschiano.
Contesta que existam, nos textos,
elementos que possam justificá-las. Isso não o impede, porém,
de afirmar que a vontade de potência "é incontestavelmente a
maior obra de Nietzsche" (pág.
43), apesar de este livro estar na
base mesma dessas apropriações.
Não impede, inclusive, de extrair, sem critério, passagens dos
escritos do filósofo, a despeito de
terem sido os recortes arbitrários
em sua obra responsáveis pela deturpação de suas idéias.
Talvez sejam os livros introdutórios os mais trabalhosos de elaborar. Ao contrário do que se supõe,
eles exigem do autor conhecimento do assunto, acuidade para articular idéias, perspicácia para selecionar problemas -e, ainda, o
tom adequado para falar ao público, com rigor e simplicidade, das
questões mais complexas.
É, pois, um desserviço que
"Nietzsche em 90 Minutos" presta ao público. E isso talvez nem
mesmo se deva à má-fé do autor; é
bem provável que resulte de sua
ignorância. De forma sub-reptícia
e insidiosa, ele constrói uma imagem do filósofo que mais se aproxima de um clichê. Afinal, se teve
algum contato com as obras de
Nietzsche, com elas não deve ter
gasto mais de 90 minutos.
Scarlett Marton é professora no departamento
de filosofia da Universidade de São Paulo e autora de "Nietzsche, das Forças Cósmicas aos Valores Humanos" (Brasiliense), entre outros.
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