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CARLOS HEITOR CONY
Biografia precoce de um herói do nosso tempo
Era um brasileiro como outro
qualquer: tão fracassado que nem
Aids conseguia pegar. Bem que
tentou. Antes do boom da doença,
e repetindo o anti-herói de um
conto de Arthur de Azevedo, ele
procurou chamar a atenção da
plebe, dos segundos cadernos, dos
pauteiros de telejornais e dos cineastas em disponibilidade.
No conto do Arthur, a noiva do
personagem diz que só se casará
após o nome do noivo aparecer
num jornal. O sujeito tenta tudo
-poemas, artigos, caridade,
comparece aos saraus, ao beija-mão do Paço Imperial- na esperança de ter o nome publicado.
Chega a roubar uns queijos de
uma confeitaria, certo de que o
noticiário policial registrará a
ocorrência, certamente a sua prisão.
Mas os jornais sempre trocam o
seu nome, fazendo mil variações
em torno dele. Morre de frustração, quase um suicídio, e nem no
obituário seu nome aparece grafado corretamente.
Pois o meu personagem fez tudo
o que podia e não podia: teatro,
uma novela na televisão, comprou sanduíches na barraca do
Pepê. Vamos acompanhá-lo por
décadas.
Nos anos 60, converteu-se ao
hare krishna, viu 33 vezes a peça
""Hair" e 28 vezes o ""Oh Calcutá!"
No início dos anos 70, adotou um
codinome complicado, de origem
tupi-guarani, participou de reuniões subversivas e assinou todos
os manifestos que corriam pela
praça.
Mais tarde, abjurou tudo isso,
considerando a política uma expressão brega da sociedade. Dedicou-se ao verde, assinou novos
manifestos, só que agora eram
ecológicos, tomou parte numa
passeata em que carregou um cartaz de confecção própria em que
se lia: ""Salvemos as baleias!".
Na mesma época, participou de
um monumental abraço de 5.000
pessoas em torno da Lagoa, aqui
no Rio.
Passou pela minha varanda e
me acenou lá de baixo, pedindo
que eu também descesse.
Tudo isso deu em nada: o jeito
foi mudar de vestes e de lado. Nos
anos 80 fez corretagem na bolsa,
usou gravatas Gucci, comprou a
obra completa do Gabriel García
Márquez.
Nas horas vagas, fez um curso
de contenção verbal com o finado
Hélio Pellegrino -e aí é que desembestou mesmo, falava até sozinho.
Os anos 90 o encontraram em
fase de comida vegetariana, campanha contra o tabagismo, musculação e pesquisas no campo da
MPB, em que pretendia localizar
as influências dos ritmos afros no
xaxado nordestino. Iniciou uma
campanha contra a música caipira e procedeu ao levantamento da
obra musical dos pífaros de Caruaru.
Apesar de tais e tantas tentativas, continuava anônimo e bem-sucedido nos negócios: o pai prosperava e pagava as faturas todas
-desde que ele não tentasse trabalhar na firma familiar que
prosperara nos tempos do regime
militar e continuava a prosperar
nos tempos redentores do regime
neoliberal.
Foi então que resolveu se drogar. A rigor, não gostava da coisa,
sentia um enjôo esquisito no estômago, e a cabeça não conseguia
pensar em outra coisa além de um
carrapato que se tornara uma obsessão recorrente.
Na remota infância, prevaricara com um guri num matagal, e a
mãe achou um carrapato em suas
partes pudendas.
Juntamente com a droga, adotou uma sunga que deixava tudo
de fora. Apesar da idade (50 e tantos anos), ainda mantinha o mesmo físico dos anos 70: grandes coxas e peito ovante.
Drogado, conheceu muita gente
boa, mas nem assim escapou da
vala comum.
Certa noite, deram uma batida
no morro Santa Marta, seu nome
apareceu entre os consumidores,
folgou veramente, mas folgou em
vão: os jornais foram corrompidos
pela família, e seu nome nem chegou a ser mencionado nos noticiários da televisão e da mídia impressa.
Fez então sua opção mais radical e lúcida: pegar Aids antes que
ela saísse de moda. Usou seringas
encontradas na areia de Ipanema
e contraiu uma hepatite virótica
que o derrubou por 40 dias e 40
noites, período em que devorou
montanhas de suspiros de açúcar
e assistiu aos filmes da TV recomendados pela imprensa especializada.
Foi aí que lhe veio a idéia de
apressar os acontecimentos e contrair Aids de forma rápida e eficaz: passou a frequentar os gays e
de tal forma dedicou-se ao mister
que logo foi apelidado de ""Galinha Purpurina".
Tantas fez, em tantas e com tantos se meteu, que acabou contraindo uma Aids fulminante que
em apenas seis meses o levou desta para pior.
Não teve oportunidade de ler o
sucinto obituário que os jornais
dedicam aos que se vão. Mais
uma vez a família se intrometeu e
abafou até mesmo a própria morte.
Deixou a sua coleção de discos
do João Gilberto (primeiras gravações atestadas pelo Ricardo
Cravo Albin e elogiadas pelo Ruy
Castro) para um sobrinho adotivo. As obras do García Márquez
foram doadas à biblioteca da
Fundação do Bem-Estar do Menor.
Chamava-se Leonel Meirelles
(com dois "eles"), mas, não se sabe
por quê, um orador à beira de seu
túmulo, dando-lhe as despedidas,
começou a oração fúnebre com as
sentidas e também fúnebres palavras: ""Adeus, Leôncio!".
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