São Paulo, sexta-feira, 03 de março de 2000


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CARLOS HEITOR CONY
Biografia precoce de um herói do nosso tempo

Era um brasileiro como outro qualquer: tão fracassado que nem Aids conseguia pegar. Bem que tentou. Antes do boom da doença, e repetindo o anti-herói de um conto de Arthur de Azevedo, ele procurou chamar a atenção da plebe, dos segundos cadernos, dos pauteiros de telejornais e dos cineastas em disponibilidade.
No conto do Arthur, a noiva do personagem diz que só se casará após o nome do noivo aparecer num jornal. O sujeito tenta tudo -poemas, artigos, caridade, comparece aos saraus, ao beija-mão do Paço Imperial- na esperança de ter o nome publicado.
Chega a roubar uns queijos de uma confeitaria, certo de que o noticiário policial registrará a ocorrência, certamente a sua prisão.
Mas os jornais sempre trocam o seu nome, fazendo mil variações em torno dele. Morre de frustração, quase um suicídio, e nem no obituário seu nome aparece grafado corretamente.
Pois o meu personagem fez tudo o que podia e não podia: teatro, uma novela na televisão, comprou sanduíches na barraca do Pepê. Vamos acompanhá-lo por décadas.
Nos anos 60, converteu-se ao hare krishna, viu 33 vezes a peça ""Hair" e 28 vezes o ""Oh Calcutá!" No início dos anos 70, adotou um codinome complicado, de origem tupi-guarani, participou de reuniões subversivas e assinou todos os manifestos que corriam pela praça.
Mais tarde, abjurou tudo isso, considerando a política uma expressão brega da sociedade. Dedicou-se ao verde, assinou novos manifestos, só que agora eram ecológicos, tomou parte numa passeata em que carregou um cartaz de confecção própria em que se lia: ""Salvemos as baleias!".
Na mesma época, participou de um monumental abraço de 5.000 pessoas em torno da Lagoa, aqui no Rio.
Passou pela minha varanda e me acenou lá de baixo, pedindo que eu também descesse.
Tudo isso deu em nada: o jeito foi mudar de vestes e de lado. Nos anos 80 fez corretagem na bolsa, usou gravatas Gucci, comprou a obra completa do Gabriel García Márquez.
Nas horas vagas, fez um curso de contenção verbal com o finado Hélio Pellegrino -e aí é que desembestou mesmo, falava até sozinho.
Os anos 90 o encontraram em fase de comida vegetariana, campanha contra o tabagismo, musculação e pesquisas no campo da MPB, em que pretendia localizar as influências dos ritmos afros no xaxado nordestino. Iniciou uma campanha contra a música caipira e procedeu ao levantamento da obra musical dos pífaros de Caruaru.
Apesar de tais e tantas tentativas, continuava anônimo e bem-sucedido nos negócios: o pai prosperava e pagava as faturas todas -desde que ele não tentasse trabalhar na firma familiar que prosperara nos tempos do regime militar e continuava a prosperar nos tempos redentores do regime neoliberal.
Foi então que resolveu se drogar. A rigor, não gostava da coisa, sentia um enjôo esquisito no estômago, e a cabeça não conseguia pensar em outra coisa além de um carrapato que se tornara uma obsessão recorrente.
Na remota infância, prevaricara com um guri num matagal, e a mãe achou um carrapato em suas partes pudendas.
Juntamente com a droga, adotou uma sunga que deixava tudo de fora. Apesar da idade (50 e tantos anos), ainda mantinha o mesmo físico dos anos 70: grandes coxas e peito ovante.
Drogado, conheceu muita gente boa, mas nem assim escapou da vala comum.
Certa noite, deram uma batida no morro Santa Marta, seu nome apareceu entre os consumidores, folgou veramente, mas folgou em vão: os jornais foram corrompidos pela família, e seu nome nem chegou a ser mencionado nos noticiários da televisão e da mídia impressa.
Fez então sua opção mais radical e lúcida: pegar Aids antes que ela saísse de moda. Usou seringas encontradas na areia de Ipanema e contraiu uma hepatite virótica que o derrubou por 40 dias e 40 noites, período em que devorou montanhas de suspiros de açúcar e assistiu aos filmes da TV recomendados pela imprensa especializada.
Foi aí que lhe veio a idéia de apressar os acontecimentos e contrair Aids de forma rápida e eficaz: passou a frequentar os gays e de tal forma dedicou-se ao mister que logo foi apelidado de ""Galinha Purpurina".
Tantas fez, em tantas e com tantos se meteu, que acabou contraindo uma Aids fulminante que em apenas seis meses o levou desta para pior.
Não teve oportunidade de ler o sucinto obituário que os jornais dedicam aos que se vão. Mais uma vez a família se intrometeu e abafou até mesmo a própria morte.
Deixou a sua coleção de discos do João Gilberto (primeiras gravações atestadas pelo Ricardo Cravo Albin e elogiadas pelo Ruy Castro) para um sobrinho adotivo. As obras do García Márquez foram doadas à biblioteca da Fundação do Bem-Estar do Menor.
Chamava-se Leonel Meirelles (com dois "eles"), mas, não se sabe por quê, um orador à beira de seu túmulo, dando-lhe as despedidas, começou a oração fúnebre com as sentidas e também fúnebres palavras: ""Adeus, Leôncio!".


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