São Paulo, sábado, 03 de março de 2001

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LIVROS/LANÇAMENTOS

"NADA MAIS FOI DITO NEM PERGUNTADO"

Obra cria novo gênero literário

ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

"É tudo ficção. Qualquer semelhança (...)" Claro que não. E as frases, que servem menos de escusa legal do que epígrafe, podem ser lidas para além dessa primeira ambiguidade. Num limite metafísico, sugerem o ceticismo total: tudo é ficção, não existe verdade. Mas, num limite linguístico, indicam outra forma de ceticismo, mais presa ao contexto: as verdades escondem-se em suas ficções. É no cruzamento dessas incertezas, retratadas no cenário tragicômico da Justiça brasileira, que se instaura o teatro literário de Luís Francisco Carvalho Filho.
"Eu sou escritor e estou fazendo um trabalho de pesquisa de linguagem...", explica um inominado "Homem", num dos 13 episódios que compõem o livro. (São 13 fragmentos, redigidos como peças de teatro, mas inaugurando um gênero novo, entre a ficção, o teatro e a reportagem.)
A aparição hitchcockiana de um escritor registrando os diálogos na corte de Justiça é um dos raros momentos de auto-referência explícita, num livro escrito com sentido refinado de distanciamento e ironia. A explicação não é o bastante para o juiz, que expulsa o escritor da sala.
Pesquisa de linguagem? Pode ser, mas a definição é pequena para a grandeza da empreitada. Porque o que importa, nesse livro de diálogos, é menos a constituição "pura" da linguagem do que as impurezas de sentido, toda a multiplicidade de marcas humanas, sociais, regionais e pessoais que se deixam escutar, num espaço de conflito.
Que o autor tem uma espécie de ouvido absoluto para os registros da fala fica manifesto ao longo do livro inteiro e rende exemplos virtuosísticos -como esses, escolhidos ao acaso: "DELEGADO: Ó a cara do filho da puta", "CHEFE [para o ADVOGADO": O senhor pode usar o banheiro do gabinete. O juiz não se incomoda", "R...: Aí me levaram para outra sala, em outro andar. Tinha uma geladeira com pernas e braços".
Não é fácil escrever assim. Se parece fácil, isso é um tributo à arte discreta de Luís Francisco Carvalho Filho, que controla as nuances da expressão com um senso fantástico de ritmos e acentos. E isso ainda é a parte menos notável deste livro, que abraça um projeto maior.
O ponto crucial na maioria dos casos é aquele em que se dá a passagem da linguagem "real" -quer dizer, oral transcrita - para o texto técnico ditado pelo juiz. (Nos autos de um processo, é sempre o texto ditado pelo juiz que aparece, não a transcrição, palavra por palavra, do que disseram réus, testemunhas e advogados.) Há muitos choques, no correr do texto, entre essa linguagem jurídica, formalizada, e aquilo que "de fato" se depreende do que foi "dito".
São choques, em primeiro lugar, de entendimento, quando se toma consciência da sucessão de barbáries que a realidade nacional joga todos os dias no funil dos tribunais. São também chocantes os modos como a formalização do texto legal pode esconder aquilo que qualquer um vê: qualquer um que tenha a sensibilidade e a coragem (face ao risco de parecer sentimental) de pôr em jogo, de novo, as contingências humanas.
"JUIZ: "Sei. Vamos lá: [Para a escrevente, ditando." Que o réu admite em parte a acusação. Que foi preso pela Guarda quando...'" O texto acaba assim, nas reticências. Às vezes, nem se chega a avançar muito na cena, restrita a um pedaço de diálogo. O mínimo de traços rende o máximo de caracterização. E o caso jurídico, em si, não tem maior importância. Nunca se chega a veredictos. Cada vez de um jeito, o leitor é instigado a refletir sobre o enigma, a encenação de uma chaga, ou sintoma, desconfortavelmente típico e captado, aqui, em instantâneos da fala.
Um cabo que prende dois suspeitos de "homossexualismo" ("um tipo de prostituição") simplesmente porque estavam estacionados numa certa rua, numa certa hora; ou um juiz com interesse sexual na testemunha adolescente são exemplos verossivelmente caricatos.
Mas, na maior parte dos episódios, o que se tem é uma multiplicidade compreensível de motivos, de origens diversas, ativados pelas circunstâncias do teatro jurídico. Esses motivos são todos até certa medida legítimos, mas nem por isso deixam de ser antagônicos. Nem o livro está aqui para arredondar absurdos e culpas e pintar a responsabilidade dos bons corações.
É verdade que os juízes, de modo geral, não se saem muito bem. O poder do papel transfigura qualquer um, do magistrado mais arrogante ao delegado com instinto de Calígula. Mas a transfiguração de um fato acontecido em relatos, explicações, hipóteses, comentários é uma aflição universal, suportada com graus variados de ingenuidade e consciência. O fato de Luís Francisco ser advogado criminalista está, nalguma medida, implicado nas ficções do livro; e dá um outro tom, não simplesmente antilegalista, a esse seu quinhão de revolta.
O livro começa num "começo da tarde", no verão, e termina num "fim de tarde" de inverno, numa sala onde se dá o previsível confronto entre dois juízes, um tendo que julgar o outro. Tudo ficção? Da quase comédia nelson rodriguiana passou-se a um outro tipo de olhar.
Certa melancolia, mesmo, que se deixa perceber no fundo da raiva controlada e disfarçada da prosa. Que ninguém se engane. Esse pequeno livro é uma grande estréia e fica, desde já, na companhia daquelas outras poucas obras surpreendentes e necessárias que nossa geração já foi capaz de escrever sobre o Brasil.


"Nada mais foi dito ou perguntado"
    
Autor: Luís Francisco Carvalho Filho
Editora: 34
Quanto: R$ 15 (88 págs.)





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