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LIVROS/LANÇAMENTOS
"NADA MAIS FOI DITO NEM PERGUNTADO"
Obra cria novo gênero literário
ARTHUR NESTROVSKI
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS
"É tudo ficção. Qualquer semelhança (...)" Claro que
não. E as frases, que servem menos de escusa legal do que epígrafe, podem ser lidas para além dessa primeira ambiguidade. Num limite metafísico, sugerem o ceticismo total: tudo é ficção, não
existe verdade. Mas, num limite
linguístico, indicam outra forma
de ceticismo, mais presa ao contexto: as verdades escondem-se
em suas ficções. É no cruzamento
dessas incertezas, retratadas no
cenário tragicômico da Justiça
brasileira, que se instaura o teatro
literário de Luís Francisco Carvalho Filho.
"Eu sou escritor e estou fazendo
um trabalho de pesquisa de linguagem...", explica um inominado "Homem", num dos 13 episódios que compõem o livro. (São 13
fragmentos, redigidos como peças de teatro, mas inaugurando
um gênero novo, entre a ficção, o
teatro e a reportagem.)
A aparição hitchcockiana de um
escritor registrando os diálogos
na corte de Justiça é um dos raros
momentos de auto-referência explícita, num livro escrito com sentido refinado de distanciamento e
ironia. A explicação não é o bastante para o juiz, que expulsa o escritor da sala.
Pesquisa de linguagem? Pode
ser, mas a definição é pequena para a grandeza da empreitada. Porque o que importa, nesse livro de
diálogos, é menos a constituição
"pura" da linguagem do que as
impurezas de sentido, toda a multiplicidade de marcas humanas,
sociais, regionais e pessoais que se
deixam escutar, num espaço de
conflito.
Que o autor tem uma espécie de
ouvido absoluto para os registros
da fala fica manifesto ao longo do
livro inteiro e rende exemplos virtuosísticos -como esses, escolhidos ao acaso: "DELEGADO: Ó a
cara do filho da puta", "CHEFE
[para o ADVOGADO": O senhor
pode usar o banheiro do gabinete.
O juiz não se incomoda", "R...: Aí
me levaram para outra sala, em
outro andar. Tinha uma geladeira
com pernas e braços".
Não é fácil escrever assim. Se parece fácil, isso é um tributo à arte
discreta de Luís Francisco Carvalho Filho, que controla as nuances
da expressão com um senso fantástico de ritmos e acentos. E isso
ainda é a parte menos notável
deste livro, que abraça um projeto
maior.
O ponto crucial na maioria dos
casos é aquele em que se dá a passagem da linguagem "real"
-quer dizer, oral transcrita -
para o texto técnico ditado pelo
juiz. (Nos autos de um processo, é
sempre o texto ditado pelo juiz
que aparece, não a transcrição,
palavra por palavra, do que disseram réus, testemunhas e advogados.) Há muitos choques, no correr do texto, entre essa linguagem
jurídica, formalizada, e aquilo que
"de fato" se depreende do que foi
"dito".
São choques, em primeiro lugar, de entendimento, quando se
toma consciência da sucessão de
barbáries que a realidade nacional
joga todos os dias no funil dos tribunais. São também chocantes os
modos como a formalização do
texto legal pode esconder aquilo
que qualquer um vê: qualquer um
que tenha a sensibilidade e a coragem (face ao risco de parecer sentimental) de pôr em jogo, de novo, as contingências humanas.
"JUIZ: "Sei. Vamos lá: [Para a
escrevente, ditando." Que o réu
admite em parte a acusação. Que
foi preso pela Guarda quando...'"
O texto acaba assim, nas reticências. Às vezes, nem se chega a
avançar muito na cena, restrita a
um pedaço de diálogo. O mínimo
de traços rende o máximo de caracterização. E o caso jurídico, em
si, não tem maior importância.
Nunca se chega a veredictos. Cada
vez de um jeito, o leitor é instigado a refletir sobre o enigma, a encenação de uma chaga, ou sintoma, desconfortavelmente típico e
captado, aqui, em instantâneos da
fala.
Um cabo que prende dois suspeitos de "homossexualismo"
("um tipo de prostituição") simplesmente porque estavam estacionados numa certa rua, numa
certa hora; ou um juiz com interesse sexual na testemunha adolescente são exemplos verossivelmente caricatos.
Mas, na maior parte dos episódios, o que se tem é uma multiplicidade compreensível de motivos,
de origens diversas, ativados pelas
circunstâncias do teatro jurídico.
Esses motivos são todos até certa
medida legítimos, mas nem por
isso deixam de ser antagônicos.
Nem o livro está aqui para arredondar absurdos e culpas e pintar
a responsabilidade dos bons corações.
É verdade que os juízes, de modo geral, não se saem muito bem.
O poder do papel transfigura
qualquer um, do magistrado mais
arrogante ao delegado com instinto de Calígula. Mas a transfiguração de um fato acontecido em
relatos, explicações, hipóteses, comentários é uma aflição universal, suportada com graus variados
de ingenuidade e consciência. O
fato de Luís Francisco ser advogado criminalista está, nalguma medida, implicado nas ficções do livro; e dá um outro tom, não simplesmente antilegalista, a esse seu
quinhão de revolta.
O livro começa num "começo
da tarde", no verão, e termina
num "fim de tarde" de inverno,
numa sala onde se dá o previsível
confronto entre dois juízes, um
tendo que julgar o outro. Tudo
ficção? Da quase comédia nelson
rodriguiana passou-se a um outro
tipo de olhar.
Certa melancolia, mesmo, que
se deixa perceber no fundo da raiva controlada e disfarçada da prosa. Que ninguém se engane. Esse
pequeno livro é uma grande estréia e fica, desde já, na companhia daquelas outras poucas
obras surpreendentes e necessárias que nossa geração já foi capaz
de escrever sobre o Brasil.
"Nada mais foi dito ou perguntado"
Autor: Luís Francisco Carvalho Filho
Editora: 34
Quanto: R$ 15 (88 págs.)
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