São Paulo, sábado, 03 de março de 2001

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RESENHA DA SEMANA

A negação da negação

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

A maior ironia de "A Confissão de Lúcio" (1914), novela do modernista português Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), já começa pelo título. Porque o princípio dessa confissão é o da denegação: uma narrativa que diz o oposto do que está dizendo e que, sob o propósito de confessar, tenta em vão dissimular o que acaba revelando de qualquer jeito, a despeito da sua negação.
O narrador aqui está condenado a confirmar o que a sua confissão tenta desmentir. Como o louco que, preso no círculo da sua loucura, por mais que insista que não é louco, quanto mais o afirma aos berros mais louco parece: "Talvez não me acreditem. Decerto que não me acreditam. Mas pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não assassinei Ricardo Loureiro é nulo. (...) A minha defesa era impossível. Ninguém me acreditaria".
Nada é simples em "A Confissão de Lúcio", ao contrário do que garante o narrador ao final do seu relato tortuoso e alucinado, um texto feito de forças opostas, de dizer e desdizer-se, de atração e repulsa simultâneas, fascínio e sarcasmo em relação aos mesmos objetos, afirmação e negação subsequente, cujo efeito mais incisivo é o de uma ironia insaciável.
"Não estou escrevendo uma novela. Apenas desejo fazer uma exposição clara dos fatos. (...) Aliás, por mais lúcido que queira ser, a minha confissão resultará -estou certo- a mais incoerente, a mais perturbadora, a menos lúcida", previne o narrador logo na introdução. Sua aparente defesa será, no fundo, a sua denúncia, a confissão do seu crime, da sua culpa e da sua loucura.
A denegação costuma ser forma inconsciente e dissimulada de dizer o que o sujeito não pode ou não consegue simplesmente afirmar. A ironia de "A Confissão de Lúcio" é que a denegação passa a ser método narrativo deliberado. Ela é resultado tanto da inconsciência do narrador-personagem como da mais plena consciência do escritor.
Sem querer reduzir a obra a uma análise psicológica rasteira do autor (um dândi e esteta que se autodenominava "esfinge gorda", atormentado pela sua aparência física e pela culpa de sua homossexualidade), é impossível não ver nessa duplicidade da narrativa um ataque irônico ao não-dito e à ambiguidade a que estava condenado o escritor pela hipocrisia do mundo em que vivia.
O narrador diz que vai falar às claras e só consegue descrever situações enevoadas e indescritíveis, em que tudo pode, ao mesmo tempo, ser e não ser; em que o material é impalpável, os homens são femininos, e as mulheres, masculinas, num sensualismo completamente idealizado.
Sá-Carneiro serve-se dessa ambiguidade, deliberadamente, contra a hipocrisia que a engendra. E daí que "A Confissão de Lúcio" é, desse ponto de vista, uma novela cômica: "Todo ele encantava as mulheres. Tanta rapariguinha que o seguia de olhos fascinados quando o artista, sobranceiro e esguio, investigava os cafés... Mas esse olhar, no fundo, era mais o que as mulheres lançam a uma criatura de seu sexo, formosíssima e luxuosa, cheia de pedrarias...".
Do mesmo modo, o narrador uma hora tem desejo, na outra tem nojo e termina por tentar confundir as duas coisas, transformando antônimos em sinônimos. Essa representação tortuosa chega ao cúmulo com a situação central da novela: o sujeito que Lúcio é acusado de ter matado só consegue manter relações de amizade que sejam também sexuais e, sempre num sensualismo freneticamente idealizado, acredita poder consumá-las com os amigos do mesmo sexo por intermédio da própria mulher, ao torná-la amante deles. Faz da própria mulher a peça intermediária e a materialização do seu amor impossível pelos amigos. Faz dela a sublimação da sua homossexualidade.
Ou pelo menos é o que "vê" o narrador, porque ao final já não restam muitas dúvidas quanto ao solipsismo do que diz. Seu discurso invertido ironiza a cultura da confissão e da culpa.
Como no clássico do cinema expressionista alemão "O Gabinete do Doutor Caligari" (1919), quando Lúcio fala do outro e do mundo à sua volta, é de si mesmo e da própria loucura que está falando: "As coisas em que não me vejo, nunca me sucederam".


A Confissão de Lúcio
    
Autor: Mário de Sá-Carneiro
Editora: Landy
Quanto: R$ 12 (110 págs.)





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