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RESENHA DA SEMANA
A negação da negação
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
A maior ironia de "A Confissão de Lúcio" (1914), novela do modernista português
Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), já começa pelo título. Porque o princípio dessa confissão é
o da denegação: uma narrativa
que diz o oposto do que está dizendo e que, sob o propósito de
confessar, tenta em vão dissimular o que acaba revelando de
qualquer jeito, a despeito da sua
negação.
O narrador aqui está condenado a confirmar o que a sua confissão tenta desmentir. Como o
louco que, preso no círculo da
sua loucura, por mais que insista
que não é louco, quanto mais o
afirma aos berros mais louco parece: "Talvez não me acreditem.
Decerto que não me acreditam.
Mas pouco importa. O meu interesse hoje em gritar que não
assassinei Ricardo Loureiro é
nulo. (...) A minha defesa era
impossível. Ninguém me acreditaria".
Nada é simples em "A Confissão de Lúcio", ao contrário do
que garante o narrador ao final
do seu relato tortuoso e alucinado, um texto feito de forças
opostas, de dizer e desdizer-se,
de atração e repulsa simultâneas, fascínio e sarcasmo em relação aos mesmos objetos, afirmação e negação subsequente,
cujo efeito mais incisivo é o de
uma ironia insaciável.
"Não estou escrevendo uma
novela. Apenas desejo fazer uma
exposição clara dos fatos. (...)
Aliás, por mais lúcido que queira ser, a minha confissão resultará -estou certo- a mais incoerente, a mais perturbadora, a
menos lúcida", previne o narrador logo na introdução. Sua
aparente defesa será, no fundo, a
sua denúncia, a confissão do seu
crime, da sua culpa e da sua loucura.
A denegação costuma ser forma inconsciente e dissimulada
de dizer o que o sujeito não pode
ou não consegue simplesmente
afirmar. A ironia de "A Confissão de Lúcio" é que a denegação
passa a ser método narrativo deliberado. Ela é resultado tanto
da inconsciência do narrador-personagem como da mais plena consciência do escritor.
Sem querer reduzir a obra a
uma análise psicológica rasteira
do autor (um dândi e esteta que
se autodenominava "esfinge
gorda", atormentado pela sua
aparência física e pela culpa de
sua homossexualidade), é impossível não ver nessa duplicidade da narrativa um ataque
irônico ao não-dito e à ambiguidade a que estava condenado o
escritor pela hipocrisia do mundo em que vivia.
O narrador diz que vai falar às
claras e só consegue descrever
situações enevoadas e indescritíveis, em que tudo pode, ao
mesmo tempo, ser e não ser; em
que o material é impalpável, os
homens são femininos, e as mulheres, masculinas, num sensualismo completamente idealizado.
Sá-Carneiro serve-se dessa
ambiguidade, deliberadamente,
contra a hipocrisia que a engendra. E daí que "A Confissão de
Lúcio" é, desse ponto de vista,
uma novela cômica: "Todo ele
encantava as mulheres. Tanta
rapariguinha que o seguia de
olhos fascinados quando o artista, sobranceiro e esguio, investigava os cafés... Mas esse olhar,
no fundo, era mais o que as mulheres lançam a uma criatura de
seu sexo, formosíssima e luxuosa, cheia de pedrarias...".
Do mesmo modo, o narrador
uma hora tem desejo, na outra
tem nojo e termina por tentar
confundir as duas coisas, transformando antônimos em sinônimos. Essa representação tortuosa chega ao cúmulo com a situação central da novela: o sujeito que Lúcio é acusado de ter
matado só consegue manter relações de amizade que sejam
também sexuais e, sempre num
sensualismo freneticamente
idealizado, acredita poder consumá-las com os amigos do
mesmo sexo por intermédio da
própria mulher, ao torná-la
amante deles. Faz da própria
mulher a peça intermediária e a
materialização do seu amor impossível pelos amigos. Faz dela a
sublimação da sua homossexualidade.
Ou pelo menos é o que "vê" o
narrador, porque ao final já não
restam muitas dúvidas quanto
ao solipsismo do que diz. Seu
discurso invertido ironiza a cultura da confissão e da culpa.
Como no clássico do cinema
expressionista alemão "O Gabinete do Doutor Caligari" (1919),
quando Lúcio fala do outro e do
mundo à sua volta, é de si mesmo e da própria loucura que está falando: "As coisas em que
não me vejo, nunca me sucederam".
A Confissão de Lúcio
Autor: Mário de Sá-Carneiro
Editora: Landy
Quanto: R$ 12 (110 págs.)
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