São Paulo, sábado, 03 de março de 2001

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WALTER SALLES

Três mandamentos e um adeus

Você acredita em quantos mandamentos?
São seis horas da manhã e congelo num táxi que me leva do aeroporto para uma cidade americana. O motorista insiste, com um forte sotaque polonês:
- Você acredita em quantos mandamentos?
Olho para ele. Rosto redondo, 40 anos bem vividos, barba por fazer. Há guimbas por todo lado no taxi, e o sujeito não respeita os limites de velocidade. Simpatizo com ele e faço um esforço. Mandamentos... não isso, não aquilo...
- Não lembro, respondo.
- Pois eu só acredito em três. Primeiro mandamento: não roubo de quem tem menos que eu. Segundo: não quero ter nada de que eu não precise, para não ficar como ele (aponta para um motorista carrancudo, enfurnado em um carro imenso). Por último, nunca bebo menos de duas garrafas de vodca nos fins-de-semana para esquecer que estou na América.
De um polonês a outro. No mesmo dia, encontro numa loja de vídeo a coleção completa do "Decálogo", de Kieslowski, que acaba de sair em DVD e pode desde já ser encomendada pela Internet. Feito para a televisão polonesa em 88/ 89 com o subtítulo "Dez Pequenos Filmes sobre a Mortalidade", o "Decálogo" é uma série primorosa, inspirada nos dez mandamentos do Antigo Testamento.
Também foi recentemente publicado um livro sobre a obra completa de Kieslowski, analisando tanto os filmes de ficção quanto os mais de 30 documentários que ele realizou: "Vidas Duplas, Segundas Chances", de Annette Insdorf, professora de cinema da Universidade de Columbia.
Geoff Andrew, crítico da "Time Out" inglesa, escreveu um outro livro, "The Three Colours Trilogy", sobre os filmes "A Liberdade É Azul", "A Igualdade É Branca" e "A Fraternidade É Vermelha", que o British Film Institute editou há pouco. Finalmente, a revista francesa "Positif" lançou uma coletânea com todas as entrevistas que lhe foram dadas por Kieslowski desde 1975, além de resenhas sobre os seus filmes. Com a exceção de Kubrick, nenhum cineasta desaparecido recentemente tem sido o centro de tanta atenção. É uma bela ocasião para revisitar a sua obra.
Se Tarantino instaurou o cinismo como valor universal no cinema dos anos 90, Kieslowski nos ofereceu o antídoto. Rever os filmes do "Decálogo" hoje é, no mínimo, reconfortante. Secos, sem moralismo, eles continuam mais atuais do que nunca. Kieslowski mesclou a tradição centro-européia de um cinema reflexivo com os temas existenciais que o perseguiam -as questões do destino e do acaso, o entrelaçamento do amor e da morte. Foi além. Solidarizou-se como poucos com seus personagens, a ponto de nos fazer entender o gesto do mais frio dos assassinos ("Não Matarás - Decálogo Nš 5") ou a razão pela qual uma mulher não abrigou uma criança judia ameaçada pelo Holocausto ("Decálogo Nš 8"). Acabou redefinindo um termo que foi infelizmente banalizado: o cinema humanista.
Se a obra resiste, é também graças ao ceticismo e ao tom metafórico utilizados por um diretor que se acostumou desde cedo a driblar a censura stalinista. Tudo começou durante os anos em que Kieslowski estudou cinema na escola de Lodz -onde o grande diretor polonês Krzysztof Zanussi foi seu professor. Nos filmes de Kieslowski como em Zanussi, nada é dito de forma direta, simplista ou redutora.
Por falta de recursos, Kieslowski filmava com pouquíssimo material e um mínimo de película. A primeira tomada quase sempre valia, reflexo de um cinema essencial, realizado com mão de mestre. Os filmes que se seguiram ao "Decálogo" -"A Dupla Vida de Véronique" e a trilogia das cores- foram feitos com meios mais generosos, graças a acordos de co-produção com a França. Há quem considere esses filmes menos sintéticos e mais formalistas do que as dez pequenas obras-primas do "Decálogo". Uma coisa é certa: as indagações éticas e estéticas de Kieslowski continuam presentes na trilogia. Num mundo repleto de certezas, subsistem suas dúvidas e seu desejo de mostrar a falibilidade humana.
Kieslowski não tinha a pretensão de saber tudo. Aceitava o fato de que há coisas ao nosso redor que fogem ao nosso entendimento. Num pequeno texto que escreveu para o livro "Vidas Duplas, Segundas Chances", a atriz Irène Jacob ("A Fraternidade É Vermelha", "A Dupla Vida de Véronique") conta que, uma vez, perguntou ao diretor por que ela deveria tocar o tronco de uma árvore com a mão, como descrevia o roteiro.
- Não sei. O que você acha, Irène?
Quando Jacob começou a tecer uma explicação por demais complexa, Kieslowski a interrompeu:
- Irène, que coisa mais complicada. Tente algo mais simples... Além do mais, por que sempre querer explicar tudo?
Depois da trilogia sobre liberdade, igualdade e fraternidade, Kieslowski resolveu parar de fazer cinema. Estava exausto. Tinha filmado "A Igualdade É Branca" enquanto editava "A Liberdade É Azul" e escrevia "A Fraternidade É Vermelha" com o seu amigo e co-roteirista do "Decálogo", o advogado Krzysztof Piesiewicz.
"O cinema não preenche toda a minha vida", disse ao seu ex-assistente Krzysztof Wierzbicki, no documentário que este lhe dedicou, "I'm So-So". "Há tantos livros que ainda não li e outros que quero reler mais algumas vezes. Estou passando ao largo da vida e é melhor parar enquanto ainda é tempo."
Não houve tempo. Krzysztof Kieslowski morreu no dia 13 de março de 1996 aos 54 anos de idade. Contrariando a sugestão de amigos, internou-se "como um polonês comum", conforme dizia, num hospital de Varsóvia para fazer uma ponte de safena. Nunca acordou.
A última imagem que tenho dele é bem-humorada, mas não desnudada do seu ceticismo tão característico. É a explicação que Kieslowski dá sobre a diferença entre os americanos e ele no final de "I'm So-So": "Quando o meu agente americano me liga e eu pergunto "Como vai você?", ele invariavelmente me responde: "Estou extremamente bem". Pois eu nunca estou extremamente bem. Eu estou sempre mais ou menos. Como a vida".
Peço desculpas ao leitor pela digressão: no momento em que escrevo estas linhas, estou me sentindo especialmente mais ou menos. No avião que me traz de volta ao Brasil, uma imagem recorrente me persegue. Uma mão que me é cara toca numa superfície que desconheço. Espero que esta matéria seja doce e acolhedora como a madeira da árvore de Kieslowski.


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