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WALTER SALLES
Três mandamentos e um adeus
Você acredita em quantos mandamentos?
São seis horas da manhã e congelo num táxi que me leva do aeroporto para uma cidade americana. O motorista insiste, com um
forte sotaque polonês:
- Você acredita em quantos
mandamentos?
Olho para ele. Rosto redondo,
40 anos bem vividos, barba por
fazer. Há guimbas por todo lado
no taxi, e o sujeito não respeita os
limites de velocidade. Simpatizo
com ele e faço um esforço. Mandamentos... não isso, não aquilo...
- Não lembro, respondo.
- Pois eu só acredito em três. Primeiro mandamento: não roubo
de quem tem menos que eu. Segundo: não quero ter nada de que
eu não precise, para não ficar como ele (aponta para um motorista carrancudo, enfurnado em um
carro imenso). Por último, nunca
bebo menos de duas garrafas de
vodca nos fins-de-semana para
esquecer que estou na América.
De um polonês a outro. No mesmo dia, encontro numa loja de vídeo a coleção completa do "Decálogo", de Kieslowski, que acaba de
sair em DVD e pode desde já ser
encomendada pela Internet. Feito
para a televisão polonesa em 88/
89 com o subtítulo "Dez Pequenos
Filmes sobre a Mortalidade", o
"Decálogo" é uma série primorosa, inspirada nos dez mandamentos do Antigo Testamento.
Também foi recentemente publicado um livro sobre a obra
completa de Kieslowski, analisando tanto os filmes de ficção quanto os mais de 30 documentários
que ele realizou: "Vidas Duplas,
Segundas Chances", de Annette
Insdorf, professora de cinema da
Universidade de Columbia.
Geoff Andrew, crítico da "Time
Out" inglesa, escreveu um outro
livro, "The Three Colours Trilogy", sobre os filmes "A Liberdade É Azul", "A Igualdade É Branca" e "A Fraternidade É Vermelha", que o British Film Institute
editou há pouco. Finalmente, a
revista francesa "Positif" lançou
uma coletânea com todas as entrevistas que lhe foram dadas por
Kieslowski desde 1975, além de resenhas sobre os seus filmes. Com a
exceção de Kubrick, nenhum cineasta desaparecido recentemente tem sido o centro de tanta atenção. É uma bela ocasião para revisitar a sua obra.
Se Tarantino instaurou o cinismo como valor universal no cinema dos anos 90, Kieslowski nos
ofereceu o antídoto. Rever os filmes do "Decálogo" hoje é, no mínimo, reconfortante. Secos, sem
moralismo, eles continuam mais
atuais do que nunca. Kieslowski
mesclou a tradição centro-européia de um cinema reflexivo com
os temas existenciais que o perseguiam -as questões do destino e
do acaso, o entrelaçamento do
amor e da morte. Foi além. Solidarizou-se como poucos com seus
personagens, a ponto de nos fazer
entender o gesto do mais frio dos
assassinos ("Não Matarás - Decálogo Nš 5") ou a razão pela qual
uma mulher não abrigou uma
criança judia ameaçada pelo Holocausto ("Decálogo Nš 8"). Acabou redefinindo um termo que foi
infelizmente banalizado: o cinema humanista.
Se a obra resiste, é também graças ao ceticismo e ao tom metafórico utilizados por um diretor que
se acostumou desde cedo a driblar a censura stalinista. Tudo começou durante os anos em que
Kieslowski estudou cinema na escola de Lodz -onde o grande diretor polonês Krzysztof Zanussi
foi seu professor. Nos filmes de
Kieslowski como em Zanussi, nada é dito de forma direta, simplista ou redutora.
Por falta de recursos, Kieslowski
filmava com pouquíssimo material e um mínimo de película. A
primeira tomada quase sempre
valia, reflexo de um cinema essencial, realizado com mão de
mestre. Os filmes que se seguiram
ao "Decálogo" -"A Dupla Vida
de Véronique" e a trilogia das cores- foram feitos com meios
mais generosos, graças a acordos
de co-produção com a França. Há
quem considere esses filmes menos sintéticos e mais formalistas
do que as dez pequenas obras-primas do "Decálogo". Uma coisa é
certa: as indagações éticas e estéticas de Kieslowski continuam
presentes na trilogia. Num mundo repleto de certezas, subsistem
suas dúvidas e seu desejo de mostrar a falibilidade humana.
Kieslowski não tinha a pretensão de saber tudo. Aceitava o fato
de que há coisas ao nosso redor
que fogem ao nosso entendimento. Num pequeno texto que escreveu para o livro "Vidas Duplas,
Segundas Chances", a atriz Irène
Jacob ("A Fraternidade É Vermelha", "A Dupla Vida de Véronique") conta que, uma vez, perguntou ao diretor por que ela deveria tocar o tronco de uma árvore com a mão, como descrevia o
roteiro.
- Não sei. O que você acha, Irène?
Quando Jacob começou a tecer
uma explicação por demais complexa, Kieslowski a interrompeu:
- Irène, que coisa mais complicada. Tente algo mais simples...
Além do mais, por que sempre
querer explicar tudo?
Depois da trilogia sobre liberdade, igualdade e fraternidade,
Kieslowski resolveu parar de fazer
cinema. Estava exausto. Tinha
filmado "A Igualdade É Branca"
enquanto editava "A Liberdade É
Azul" e escrevia "A Fraternidade
É Vermelha" com o seu amigo e
co-roteirista do "Decálogo", o advogado Krzysztof Piesiewicz.
"O cinema não preenche toda a
minha vida", disse ao seu ex-assistente Krzysztof Wierzbicki, no
documentário que este lhe dedicou, "I'm So-So". "Há tantos livros que ainda não li e outros que
quero reler mais algumas vezes.
Estou passando ao largo da vida e
é melhor parar enquanto ainda é
tempo."
Não houve tempo. Krzysztof
Kieslowski morreu no dia 13 de
março de 1996 aos 54 anos de idade. Contrariando a sugestão de
amigos, internou-se "como um
polonês comum", conforme dizia,
num hospital de Varsóvia para
fazer uma ponte de safena. Nunca acordou.
A última imagem que tenho dele é bem-humorada, mas não desnudada do seu ceticismo tão característico. É a explicação que
Kieslowski dá sobre a diferença
entre os americanos e ele no final
de "I'm So-So": "Quando o meu
agente americano me liga e eu
pergunto "Como vai você?", ele invariavelmente me responde: "Estou extremamente bem". Pois eu
nunca estou extremamente bem.
Eu estou sempre mais ou menos.
Como a vida".
Peço desculpas ao leitor pela digressão: no momento em que escrevo estas linhas, estou me sentindo especialmente mais ou menos. No avião que me traz de volta ao Brasil, uma imagem recorrente me persegue. Uma mão que
me é cara toca numa superfície
que desconheço. Espero que esta
matéria seja doce e acolhedora
como a madeira da árvore de
Kieslowski.
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