São Paulo, sábado, 03 de março de 2001

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1948

De uma carta-resposta a Otto Lara Resende:
...Suas palavras me trouxeram através dos ares um estado de espírito de sábado frustrado tão semelhante ao meu, que só mesmo mostrando as vergonhas que minha natureza antipoética resolveu versificar, num sábado triste (guarde reserva, não mostre a ninguém e se possível não me comprometa com a posteridade), nesta

SINOPSE DO TÉDIO

Presente, ausente, amada sem idiomas
Sol do ocaso, vida sem esperanto
Mais do que a ninfa desgarrada:
Solstício de ingratidões.
Passo passado passageiro
Calma orvalhada de salmos
Que fugiram ao solfejo da minha dor.
Se eu tivesse Esperança
Se eu tivesse Temperança
Se eu tivesse Caridade
Cariátides de caristência
Na minha carência de ser
Salvaria a púlcura púrpura
Nas sílfides dos olhos meus.
Tivesse eu o segredo da alegria
Abriria a surpresa das tardes
E acharia o sepulcro de Deus.
Castas falassem as mãos
A chuva serena da música
Sorriria hosanas dos céus.
Mas nada! Lastro de pranto, ojeriza
Sementes do ódio, alergia
Sempiterna idiossincrasia
Lavrando no coração.
Tudo o que mais me agastando
Lavassem os móveis do espanto
Rompendo as ramagens do sono,
Nasceriam águas-vivas do canto!
Pássaros, agapantos
Cisnes de rosa em botão
E morreriam de encanto
Os adeuses em que o amor se meteu.
Adeus! Valsam os olhos teus!
E à sombra do livro aberto
Ameaças de longe, de perto
Os lírios do frio e do medo
Que o sono de musgos cercou.
Mares de tédio refazem
No estéril estêncil da bruma
O sal, o sangue, a espuma
Com que me organizo em seções.
Estímulos do nada, envolventes
Estrias de sono, correntes
Cadeias de dedos e dentes
Me sacrificam ao fogo
Da ordem sagrada de Zeus.
Versos brandos brincaram
Na boca da noite e se foram
Serpentes de escuridão.
Erguem para os céus o trigo
Levam a vida consigo
Mas me seguram no chão.
Coração, ai, meu coração!
Tudo o que passa, passado
O salto do abismo foi dado
Estrela do orgulho fugiu.
Soluço do tempo partido
Já estou do outro lado
Ninguém quis ver: ninguém viu.


Despedida

De uma carta a Hélio Pellegrino:
...Aí vai a minha despedida de Nova York (depois de alguns uísques, é claro). Não sou poeta, nem mesmo invocando a inspiração do Vinicius,

"quando por acaso uma mijada ferve,
Seguida de um olhar sem malícia e verve
Nós todos, animais, sem comoção nenhuma
Mijamos em comum numa festa de espuma":*

O POETA, BÊBADO, FAZ PIPI

Vinha às duas para casa,
De madrugada, no gelo baço
de Nova York convencional.
De repente não dou mais um passo:
Levanto a cabeça, abaixo o braço,
Abro a braguilha, tiro o meu pau.
Que sensação de grandeza!
Que estranho ritual!
Pernas abertas no frio
Desafio a oligarquia
Das horas do bem e do mal -
Enquanto riscando a neve
Espumante, o mijo escreve
O meu protesto animal:
ABAIXO OS GIGANTES DO NADA!
FAÇAMOS O JUÍZO FINAL!
Urina americanizada,
Refugo da vida,

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* "Soneto de Intimidade", Vinicius de Moraes.




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