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NOVA YORK - 1948
Nostalgia de Paris
Nova York tem certo ciúme de Paris. Não é ciúme declarado, em termos de comparação,
macerado em despeitos
de amor. Nada disso.
Nasce de amor enrustido, secreto
e nostálgico, gênero pai de família
quarentão acalentando na sombra furtivas reminiscências dos
seus desmandos de mocidade.
A cada novo sucesso das gloriosas pernas de Mistinguette, que há
20 anos atrás passearam no seu
fanado sonho da boemia, de morar no Quartier Latin ou de beber
champanhe no sapato, o nova-iorquino responde hoje com mais
um filho, mais um arranha-céu
ou mais uma declaração de imposto sobre a renda.
Se fala, porém, de Nova York
com firmeza e convicção, colocando em seguida um ponto final
de patriótica vaidade, não deixa
de sugerir adjetivas reticências ao
nome de Paris. A idéia, convencional de tão repetida, de que a civilização francesa, como a da Grécia, já teve a sua época de esplendor, entrando em decadência no
mundo de pós-guerra, não chega
a neutralizar um sentimento inconsciente, mas generalizado, de
que os seus bosques têm mais vida e a vida no seio das parisienses
mais amores.
Um vespertino fez há dias um
inquérito entre os transeuntes de
Manhattan, indagando se era verdade, conforme um escritor qualquer havia proclamado, que a
mulher americana é inepta, indiferente e preguiçosa, ao passo que
a francesa é inteligente e esclarecida, com maior receptividade artística e mais sabedoria nas coisas
da vida. Quase todas as respostas
afirmavam a capacidade da mulher americana para o trabalho,
sua dedicação e eficiência diariamente comprovadas -mas reconheciam a superioridade cultural
da mulher francesa, o que lhe dá
mais encantos. E fora disso, insinuavam mesmo, em meio à vida
trepidante de Nova York, a existência de uma secreta nostalgia de
Paris, inclusive naqueles que nunca foram lá.
Durante a guerra muitos foram:
as famílias dos soldados que combateram na França tiveram de enfrentar na sua volta o irredutível
sentimento de desânimo que eles
trouxeram para cá, em relação às
coisas de casa. Vinham impregnados do espírito francês, com
uma compreensão da vida mais
vasta e inspirada, um sentido de
humanidade que antes desconheciam. Vinham do Velho Mundo,
trazendo o testemunho das tradições de séculos, plasmadas no sofrimento. Aprenderam a sua lição
e voltaram da aula abatidos. Entendiam melhor porque os franceses amavam na França a sua liberdade, enquanto os americanos
amavam nos Estados Unidos o
seu regime constitucional. E muitos não voltaram.
Ficaram por lá, vivendo em Paris. Não com o espírito belicoso
ou simplesmente patriótico de
quem continuou em campo esperando a hora do segundo jogo,
mas apenas com a certeza de
quem não quer outra vida. São vagamente desertores -desertores
remunerados, que o governo, segundo me informaram, deixou à
solta por uns tempos para que "se
educassem". Mudaram de ares,
de mulheres e de convicções, e
procuraram ignorar da melhor
maneira possível, digamos de maneira artística, as razões do último
discurso do presidente Truman
ou as razões pelas quais Deus fez a
América. Às vezes uma esposa,
um credor ou a própria mãe, saudosos, reclamam pelos jornais de
notícias desses entes queridos.
Mas a sua permanência na Europa tem uma invulnerabilidade
que a lei garante e sua ojeriza pelas cartas, motivo que os Correios
ignoram.
Um dia a mãe de um deles, numa pequenina cidade de um dos
Estados do Sul, não suportou
mais o silêncio do filho, e escreveu
aflitiva carta ao juiz daquela comarca solicitando providências:
guerra terminada, o rapaz ficara
em Paris mesmo, certo de que por
causa de um soldado não acaba a
guerra -e desde então não enviara mais uma linha de notícias;
a mãe nem sequer sabia de seu paradeiro ou estado de saúde. Podia
até mesmo ter morrido! Ela vivia
na maior das aflições. Esperava
que alguma coisa se pudesse fazer.
O juiz, depois de verificar que a
causa daquela senhora escapava à
sua jurisdição, seguiu os trâmites
legais: anexou à carta uma filha
com o seu parecer, meteu-a numa
pasta e submeteu o caso a consideração superior, encaminhando-o ao prefeito da cidade.
O prefeito, homem de grande
saber e erudição, ponderou com
justeza que fugia também à sua alçada, desde que não envolvia
questão propriamente municipal;
e emitindo um brilhante parecer,
enviou-o ao governador do Estado.
O processo deu entrada e foi
merecendo, de estudo a estudo, a
melhor consideração. Quando
chegou às mãos do governador,
este, porém, teve de concluir a folhas tantas que o assunto era de
competência do governo federal,
e somente em Washington seria
resolvido. Assim sendo, enviou-o,
devidamente informado, a um senador de seu Estado, para que esse fizesse a gentileza de encaminhá-lo como melhor lhe parecesse. Ao senador só podia parecer
que cabia ao Departamento de
Estado tomar as providências que
o caso requeria. Assim, valendo-se de um belo discurso no senado,
com considerações em torno da
importância do Exército no mundo moderno e em face do amor
maternal, remeteu o processo ao
Departamento de Estado.
O soldado em causa, que na vida
civil atendia pelo prosaico nome
de Jones, foi então imediatamente
localizado. Achava-se realmente
na França, fazendo só Deus sabia
o quê nas suas horas de folga, que
eram todas.
Algum tempo mais tarde a Embaixada Americana naquele país
recebeu a incumbência do caso. O
embaixador ordenou que se iniciassem as investigações no sentido de descobrir o paradeiro do tal
Jones em Paris. De indagação em
indagação, conseguiram apurar
afinal seu mais recente endereço.
E lá um belo dia um funcionário
especialmente designado partiu à
sua procura.
Depois de atravessar toda a cidade, de se meter em becos e vielas, a errar durante horas pelos subúrbios, ele se achou finalmente
em frente à casa que procurava,
pronto a desincumbir-se de sua
importante missão. Subiu com dificuldade quatro lances de uma
escada de madeira estreita e encardida. Diante da porta entreaberta parou um pouco para respirar, e entrou.
O quarto, se é que se podia chamar de quarto aquele lugar, estava na maior desordem. Havia
pontas de cigarro pelo chão, jornais velhos, livros empilhados sobre a mesa, quadros estranhos
sem moldura, molduras sem quadros, três camas desarrumadas. A
um canto um monte de roupas
sujas subia pela parede. Sobre a
cadeira havia um livro jogado,
com uma gravata entre as páginas. Do outro lado, junto a um fogão fumegante, dois homens barbados se achavam entretidos a cozinhar umas cebolas, que davam
ao quarto o mais consistente de
seus perfumes. Escarrapachado
numa das camas, fumando cachimbo, um terceiro indivíduo
também barbado, em cuecas,
aguardava pachorrentamente o
almoço.
Ao dar com o recém-chegado,
um dos cozinheiros, ocupado em
enxugar os olhos que ardiam, indicou-lhe com a colher uma cadeira, dizendo-lhe que se sentasse, enquanto o outro lhe mostrava
as cebolas com um sorriso:
- Estão quase prontas.
O funcionário da Embaixada,
em vez de sentar-se, caminhou
muito digno até o centro do quarto e perguntou com solenidade:
- Qual dos senhores se chama
Mr. Jones?
O que estava na cama designou-se a si próprio com o cachimbo,
olhar vagamente intrigado. Os
outros dois, ao pé do fogão, se voltaram, curiosos, esquecendo por
um instante as cebolas. O funcionário da Embaixada deu dois passos em direção a Mr. Jones e ergueu os braços dramaticamente:
- Em nome de Deus, menino,
por que diabo você não escreve
para sua mãe?
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