São Paulo, sábado, 03 de março de 2001

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NOVA YORK - 1948

Nostalgia de Paris

Nova York tem certo ciúme de Paris. Não é ciúme declarado, em termos de comparação, macerado em despeitos de amor. Nada disso. Nasce de amor enrustido, secreto e nostálgico, gênero pai de família quarentão acalentando na sombra furtivas reminiscências dos seus desmandos de mocidade.
A cada novo sucesso das gloriosas pernas de Mistinguette, que há 20 anos atrás passearam no seu fanado sonho da boemia, de morar no Quartier Latin ou de beber champanhe no sapato, o nova-iorquino responde hoje com mais um filho, mais um arranha-céu ou mais uma declaração de imposto sobre a renda.
Se fala, porém, de Nova York com firmeza e convicção, colocando em seguida um ponto final de patriótica vaidade, não deixa de sugerir adjetivas reticências ao nome de Paris. A idéia, convencional de tão repetida, de que a civilização francesa, como a da Grécia, já teve a sua época de esplendor, entrando em decadência no mundo de pós-guerra, não chega a neutralizar um sentimento inconsciente, mas generalizado, de que os seus bosques têm mais vida e a vida no seio das parisienses mais amores.
Um vespertino fez há dias um inquérito entre os transeuntes de Manhattan, indagando se era verdade, conforme um escritor qualquer havia proclamado, que a mulher americana é inepta, indiferente e preguiçosa, ao passo que a francesa é inteligente e esclarecida, com maior receptividade artística e mais sabedoria nas coisas da vida. Quase todas as respostas afirmavam a capacidade da mulher americana para o trabalho, sua dedicação e eficiência diariamente comprovadas -mas reconheciam a superioridade cultural da mulher francesa, o que lhe dá mais encantos. E fora disso, insinuavam mesmo, em meio à vida trepidante de Nova York, a existência de uma secreta nostalgia de Paris, inclusive naqueles que nunca foram lá.
Durante a guerra muitos foram: as famílias dos soldados que combateram na França tiveram de enfrentar na sua volta o irredutível sentimento de desânimo que eles trouxeram para cá, em relação às coisas de casa. Vinham impregnados do espírito francês, com uma compreensão da vida mais vasta e inspirada, um sentido de humanidade que antes desconheciam. Vinham do Velho Mundo, trazendo o testemunho das tradições de séculos, plasmadas no sofrimento. Aprenderam a sua lição e voltaram da aula abatidos. Entendiam melhor porque os franceses amavam na França a sua liberdade, enquanto os americanos amavam nos Estados Unidos o seu regime constitucional. E muitos não voltaram.
Ficaram por lá, vivendo em Paris. Não com o espírito belicoso ou simplesmente patriótico de quem continuou em campo esperando a hora do segundo jogo, mas apenas com a certeza de quem não quer outra vida. São vagamente desertores -desertores remunerados, que o governo, segundo me informaram, deixou à solta por uns tempos para que "se educassem". Mudaram de ares, de mulheres e de convicções, e procuraram ignorar da melhor maneira possível, digamos de maneira artística, as razões do último discurso do presidente Truman ou as razões pelas quais Deus fez a América. Às vezes uma esposa, um credor ou a própria mãe, saudosos, reclamam pelos jornais de notícias desses entes queridos. Mas a sua permanência na Europa tem uma invulnerabilidade que a lei garante e sua ojeriza pelas cartas, motivo que os Correios ignoram.
Um dia a mãe de um deles, numa pequenina cidade de um dos Estados do Sul, não suportou mais o silêncio do filho, e escreveu aflitiva carta ao juiz daquela comarca solicitando providências: guerra terminada, o rapaz ficara em Paris mesmo, certo de que por causa de um soldado não acaba a guerra -e desde então não enviara mais uma linha de notícias; a mãe nem sequer sabia de seu paradeiro ou estado de saúde. Podia até mesmo ter morrido! Ela vivia na maior das aflições. Esperava que alguma coisa se pudesse fazer.
O juiz, depois de verificar que a causa daquela senhora escapava à sua jurisdição, seguiu os trâmites legais: anexou à carta uma filha com o seu parecer, meteu-a numa pasta e submeteu o caso a consideração superior, encaminhando-o ao prefeito da cidade.
O prefeito, homem de grande saber e erudição, ponderou com justeza que fugia também à sua alçada, desde que não envolvia questão propriamente municipal; e emitindo um brilhante parecer, enviou-o ao governador do Estado.
O processo deu entrada e foi merecendo, de estudo a estudo, a melhor consideração. Quando chegou às mãos do governador, este, porém, teve de concluir a folhas tantas que o assunto era de competência do governo federal, e somente em Washington seria resolvido. Assim sendo, enviou-o, devidamente informado, a um senador de seu Estado, para que esse fizesse a gentileza de encaminhá-lo como melhor lhe parecesse. Ao senador só podia parecer que cabia ao Departamento de Estado tomar as providências que o caso requeria. Assim, valendo-se de um belo discurso no senado, com considerações em torno da importância do Exército no mundo moderno e em face do amor maternal, remeteu o processo ao Departamento de Estado.
O soldado em causa, que na vida civil atendia pelo prosaico nome de Jones, foi então imediatamente localizado. Achava-se realmente na França, fazendo só Deus sabia o quê nas suas horas de folga, que eram todas.
Algum tempo mais tarde a Embaixada Americana naquele país recebeu a incumbência do caso. O embaixador ordenou que se iniciassem as investigações no sentido de descobrir o paradeiro do tal Jones em Paris. De indagação em indagação, conseguiram apurar afinal seu mais recente endereço. E lá um belo dia um funcionário especialmente designado partiu à sua procura.
Depois de atravessar toda a cidade, de se meter em becos e vielas, a errar durante horas pelos subúrbios, ele se achou finalmente em frente à casa que procurava, pronto a desincumbir-se de sua importante missão. Subiu com dificuldade quatro lances de uma escada de madeira estreita e encardida. Diante da porta entreaberta parou um pouco para respirar, e entrou.
O quarto, se é que se podia chamar de quarto aquele lugar, estava na maior desordem. Havia pontas de cigarro pelo chão, jornais velhos, livros empilhados sobre a mesa, quadros estranhos sem moldura, molduras sem quadros, três camas desarrumadas. A um canto um monte de roupas sujas subia pela parede. Sobre a cadeira havia um livro jogado, com uma gravata entre as páginas. Do outro lado, junto a um fogão fumegante, dois homens barbados se achavam entretidos a cozinhar umas cebolas, que davam ao quarto o mais consistente de seus perfumes. Escarrapachado numa das camas, fumando cachimbo, um terceiro indivíduo também barbado, em cuecas, aguardava pachorrentamente o almoço.
Ao dar com o recém-chegado, um dos cozinheiros, ocupado em enxugar os olhos que ardiam, indicou-lhe com a colher uma cadeira, dizendo-lhe que se sentasse, enquanto o outro lhe mostrava as cebolas com um sorriso:
- Estão quase prontas.
O funcionário da Embaixada, em vez de sentar-se, caminhou muito digno até o centro do quarto e perguntou com solenidade:
- Qual dos senhores se chama Mr. Jones?
O que estava na cama designou-se a si próprio com o cachimbo, olhar vagamente intrigado. Os outros dois, ao pé do fogão, se voltaram, curiosos, esquecendo por um instante as cebolas. O funcionário da Embaixada deu dois passos em direção a Mr. Jones e ergueu os braços dramaticamente:
- Em nome de Deus, menino, por que diabo você não escreve para sua mãe?


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