São Paulo, quarta-feira, 03 de março de 2004

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MARCELO COELHO

A feiúra das mais belas mulheres do mundo

O que era aquilo? Uma espécie de merengue dentuço, um coelho da Páscoa atolado no marshmallow, um carregamento de ricota embrulhado em celofane? Não. Era Renée Zellweger recebendo o Oscar de atriz coadjuvante, na primeira página da Folha de segunda-feira.
Não é que seja uma mulher feia. Gostaria de saber o que acontece: as estrelas de cinema se tornam verdadeiros buxos na festa do Oscar.
As roupas, certamente, contam muito. Na correria dos preparativos, muitas atrizes parecem ter se enrolado na cortina do salão de beleza e por pouco não entraram na festa arrastando escovas e secadores de cabelo na cauda do vestido.
Todos esses vestidos-cortinas -às vezes franzidos e leves, em cores claras, outras vezes grossos e solenes, em veludo verde ou grená- pressupõem o mesmo tipo de puxador, que é a própria estatueta do Oscar. As atrizes vencedoras seguram o prêmio como se fosse um pingente; usam em geral uma faixa larga do mesmo tecido em torno da cintura, e não raro há argolas em suas orelhas: são mulheres-janelas, num dia de bastante vento.
Poderíamos imaginar esses vestidos como a homenagem do cinema atual aos velhos tempos do teatro; as luxuosas cortinas que separavam o palco da platéia ressuscitam em cima daqueles mulherões. Não por acaso, a festa do Oscar é um dos raros momentos em que o público pode vê-las em carne e osso, como no teatro, e não projetadas na tela do cinema.
Lembro agora que a cena da cortina virando vestido pertence a um filme clássico, "E o Vento Levou...", de modo que o cinema também se homenageia a si mesmo ao instituir esse tipo de indumentária.
Seja como for, as roupas representam só uma parte da história. Também o rosto das atrizes, com raras exceções, piora bastante na cerimônia do Oscar. A maquiagem lustrosa dá a impressão de que mesmo as mais jovens estão sob o efeito de quilos de silicone nas bochechas; camadas de make-up imitam a espessura de várias plásticas, e o sorriso de todas, absolutamente igual e simultâneo, parece ter sido acionado por controle remoto.
Não é apenas efeito da tecnologia cosmética. Nas imagens transmitidas pela TV, em especial as da entrada dos concorrentes no Kodak Theatre, há outros fatores que contribuem para essa impressão de artificialidade, de empastamento, de equalização fisionômica.
As atrizes são televisionadas ao ar livre, em plena luz do dia: percebo assim o quanto do seu charme nas telas do cinema se deve à iluminação, aos ângulos da câmera. É provavelmente por isso que as antigas deusas de Hollywood tinham mais -usemos a palavra- "glamour". A fotografia em preto-e-branco permitia um uso de sombras, fumaças e nuances que o cinema colorido não comporta; muito menos a TV, com luz natural.
Ademais, como todas as atrizes estão nervosas com o veredicto e se sentem ameaçadas pelo contato direto com os fãs, teriam mesmo de transformar seus rostos em máscaras sorridentes, em produtos estandardizados. Na hora da entrega dos prêmios, é pior ainda: quem perde está obviamente impedido de manifestar qualquer emoção humana. Tarefa difícil para atrizes, suponho.
O enfeiamento de todas na festa do Oscar talvez encontre aqui uma outra razão. Fora das telas, sem roteiro a seguir, exceto o papelzinho em que estão escritas as palavras de agradecimento em caso de vitória, muitas atrizes terminam reduzidas a sua vulgaridade original.
Separadas de suas personagens, tornam-se pura matéria, coisa sem espírito, objeto sem forma; natural, assim, que os vestidos tratem de acomodá-las em armações descomunais ou de envolvê-las em embalagens frouxas, com fitas espalhafatosas e laços sobressalentes: cumpre evitar que todas se desintegrem, desmontem ou se desfaçam como gelatina sobre o tapete vermelho.
Talvez este artigo pareça fruto do brio nacional ferido, só porque "Cidade de Deus" não ganhou nenhum Oscar. Mas não acho que deveria. Gostei muito do filme; não sei se cresce ao se aproximar de Hollywood.
Também para evitar o risco da patriotada, observo que a famosa beleza da mulher brasileira sofre muitas vezes um processo análogo de pasteurização. As cenas do Carnaval são equivalentes às da entrega do Oscar: mulheres muito bonitas e de grande personalidade ficam todas parecidíssimas, com a mesma maquiagem, o mesmo sorriso, a mesma atitude.
De qualquer modo, os casos de enfeiamento mais extremo são os que ocorrem na revista "Caras". O interesse despertado por esse tipo de publicação só pode ser malévolo: trata-se de ver pessoas famosas surpreendidas não apenas nos tropeços de sua vida particular, mas também nos seus piores momentos estéticos: bocejos, esgares, olhos arregalados, roupas absurdas fazem das páginas intituladas "estilo", "agenda" ou coisa que o valha, um verdadeiro catálogo de aberrações. Para quem não está entre os dez mais, é sempre um consolo.

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