São Paulo, Quarta-feira, 03 de Março de 1999
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Guido, de "A Vida É Bela", faz graça "na" miséria

MARCELO COELHO
Colunista da Folha

Todo mundo tem seus dias de "não vi e não gostei". Minha tendência, pelo que contavam do filme, era ter essa atitude diante de "A Vida É Bela", de Roberto Benigni. Uma fábula poética sobre campos de concentração nazistas tinha tudo para ser uma farsa hedionda.
Ocorre que, hoje em dia, ser politicamente correto é a coisa mais incorreta que existe. "A Vida É Bela" ganhou prêmios até em Jerusalém. Só quem não viu não gostou. Fui ver.
Gostei? Até agora não tenho certeza. Se "gostar" significa admirar o talento do diretor, rir quando ele quer que a gente ria, comover-se quando ele quer que a gente se comova, então não há dúvida, admito que gostei muitíssimo. Só que não gostei de ter gostado.
Minha implicância não se baseia em proibições do tipo "não se brinca com essas coisas". Benigni não está brincando com o Holocausto. É claro que ele considera o nazismo um horror. Se rimos muitíssimo na primeira parte do filme, a coisa se transforma quando os personagens são levados ao campo de concentração.
Ademais, se fosse assim, não poderíamos aprovar Chaplin quando ele faz graça da miséria. Mas qual é a preposição correta? Fazer graça "da" miséria é diferente de fazer graça "sobre" a miséria, de fazer graça "com" a miséria. Rir de alguém sendo oprimido é muito diverso do que rir da maneira com que o oprimido engana a opressão.
Guido, o protagonista, faz graça "na" miséria. Não o faz para rir nem para que achemos graça, mas para garantir a sobrevivência de sua família. Engana os nazistas. Consegue fazer isso por meio de um truque oblíquo, o de iludir o filho, convencendo-o de que aquele campo de concentração é um parque de diversões.
Esse, o truque de Guido. Qual o truque de Benigni? Aqui, sinto um primeiro mal-estar. O filme não estaria dizendo que, com a dose certa de imaginação e talento, se pode contornar qualquer massacre, qualquer violência?
Benigni parecia consciente do risco de chegar a essa conclusão. Fez com que a história terminasse bem, mas não tanto. Se o final fosse completamente feliz, "A Vida É Bela" perderia o tom irônico que já se pressente no título. Seria uma "pura fábula", como se diz imprecisamente.
Não é pura fábula, porque não saímos do filme como se tivéssemos visto um conto de fadas ou uma história de Disney. Só o menino Giosué sai da história com essa sensação. Mesmo assim, é obviamente uma fábula, pois sabemos que num campo de concentração real aquela estratégia de sobrevivência seria impossível.
Benigni dá mais uma volta no parafuso, mostrando cenários não muito realistas, como a dizer que aquilo não é mesmo um campo de concentração "real". Brinca, desse modo, com duas implausibilidades: a da história que Guido conta ao filho e a da história que está contando para nós, espectadores.
A idéia do filme é, assim, muito inteligente. No fundo, Benigni está tratando de algo que afinal é o mais inacreditável de tudo, que é o próprio nazismo. Como é possível que alguém realmente tenha organizado o Holocausto? A ironia é que todos nós sabemos que o inacreditável aconteceu de fato.
Mas aqui fico com um novo mal-estar. Toda a ironia e todos os paradoxos de Benigni não impedem que vejamos esse filme como um filme qualquer -ou seja, sabendo que é uma ficção, mas ainda assim acreditando provisoriamente nela. Se "A Vida É Bela" se afirmasse completamente como uma fantasia, sem sombra de realismo, não teria problema nenhum e não teria interesse nenhum.
A opressão dos senhores sobre os camponeses na Idade Média foi certamente brutal. Mas já está tão distante no tempo que é possível fazer filmes do gênero de "Robin Hood". Ou seja, histórias que pressupõem nosso conhecimento da opressão, mas se concentram nas peripécias fantásticas do herói que vence os malvados.
A ficção toma o primeiro plano; a violência real é apenas o ponto de partida para que a aventura aconteça.
Será que "A Vida É Bela" já não estaria dando um primeiro passo no sentido de jogar a violência nazista para uma época remota, para o mundo do "era uma vez"? As ambiguidades do filme, a meu ver, derivam disso. "A Vida É Bela" parece estar dizendo, ao mesmo tempo, que "era uma vez" e que "o inacreditável aconteceu de fato". Por isso põe o personagem no papel do contador de histórias, enquanto conta a sua, de outro ponto de vista.
Mas a sua história, que admite o horror real do nazismo, precisa por exemplo fazer com que os outros prisioneiros do campo de concentração mal tenham existência. Esfumam-se, para que Guido seja possível; não ligamos muito se morrem ou não.
Acho o filme indefensável nesse aspecto. É, aliás, o velho problema dos filmes hollywoodianos: o herói que luta pela justiça acaba sendo mais um sujeito de sucesso, enquanto os coadjuvantes sorriem, postos num segundo plano bastante injusto. A vitória do Bem termina sempre sendo um elogio do privilégio de o mocinho loiro ficar com a herdeira rica.
Mas será que Benigni não está fazendo, aqui, uma nova ironia? O filme bem que poderia passar por um jogo com o cinema americano. Assim como Guido, Hollywood nos faz acreditar em tudo. E, mesmo fora de Hollywood, toda mentira pode passar por verdade, desde que devidamente maquiada. "A Vida É Bela" faz, de modo invertido, a mesma denúncia de "Truman Show - O Show da Vida". Só que a denúncia de "Truman Show" não é bem denúncia; não sabemos se glorifica ou condena a situação; é uma denúncia hollywoodiana, sem a ironia e o tom pungente que "A Vida É Bela" tem de sobra.
Este artigo vai dando voltas e voltas; acho que não acaba mais. Só uma coisa para terminar.
Nas vésperas do nazismo, as operetas vienenses eram o próprio e completo teatro da felicidade. "Schön ist die welt" (belo é o mundo), dizia, em 1930, Franz Léhar. "O País dos Sorrisos" tinha sido seu grande sucesso no ano anterior. Quem quer que tenha ouvido essas operetas entupiu-se de açúcar e falsidade. Nunca a música é tão valsante e musical; não há disneylândia comparável a tanta mentira organizada. Tão mentirosa, tão organizada, que passa por feliz.
Stendhal dizia que toda arte é uma "promessa de felicidade"; nessas operetas, é como se a promessa já tivesse sido cumprida -o que as faz um pouco menos do que artísticas. Não sei, afinal, se há felicidade possível sem um mínimo de memória da infelicidade. Uma situação que rejeitasse totalmente essa memória seria como que uma prisão, uma cegueira; o campo de concentração, melhor dizendo, da felicidade.
Essa, creio, é a crítica dos frankfurtianos à indústria cultural, especialmente ao cinema de Hollywood. Já "A Vida É Bela" seria uma espécie de opereta séria, se podemos assim dizer. Preserva a memória da infelicidade, sem dúvida. Mas tratar o nazismo como "memória" e como simples "infelicidade" me parece um truque sobre o qual nem o próprio Benigni está tendo muito controle.


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