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Guido, de "A Vida É Bela", faz graça "na" miséria
MARCELO COELHO
Colunista da Folha
Todo mundo tem seus dias de
"não vi e não gostei". Minha
tendência, pelo que contavam
do filme, era ter essa atitude
diante de "A Vida É Bela", de
Roberto Benigni. Uma fábula
poética sobre campos de concentração nazistas tinha tudo
para ser uma farsa hedionda.
Ocorre que, hoje em dia, ser
politicamente correto é a coisa
mais incorreta que existe. "A
Vida É Bela" ganhou prêmios
até em Jerusalém. Só quem não
viu não gostou. Fui ver.
Gostei? Até agora não tenho
certeza. Se "gostar" significa
admirar o talento do diretor,
rir quando ele quer que a gente
ria, comover-se quando ele
quer que a gente se comova, então não há dúvida, admito que
gostei muitíssimo. Só que não
gostei de ter gostado.
Minha implicância não se baseia em proibições do tipo "não
se brinca com essas coisas". Benigni não está brincando com o
Holocausto. É claro que ele
considera o nazismo um horror. Se rimos muitíssimo na
primeira parte do filme, a coisa
se transforma quando os personagens são levados ao campo
de concentração.
Ademais, se fosse assim, não
poderíamos aprovar Chaplin
quando ele faz graça da miséria. Mas qual é a preposição
correta? Fazer graça "da" miséria é diferente de fazer graça
"sobre" a miséria, de fazer graça "com" a miséria. Rir de alguém sendo oprimido é muito
diverso do que rir da maneira
com que o oprimido engana a
opressão.
Guido, o protagonista, faz
graça "na" miséria. Não o faz
para rir nem para que achemos
graça, mas para garantir a sobrevivência de sua família. Engana os nazistas. Consegue fazer isso por meio de um truque
oblíquo, o de iludir o filho, convencendo-o de que aquele campo de concentração é um parque de diversões.
Esse, o truque de Guido. Qual
o truque de Benigni? Aqui, sinto um primeiro mal-estar. O filme não estaria dizendo que,
com a dose certa de imaginação e talento, se pode contornar qualquer massacre, qualquer violência?
Benigni parecia consciente do
risco de chegar a essa conclusão. Fez com que a história terminasse bem, mas não tanto.
Se o final fosse completamente
feliz, "A Vida É Bela" perderia
o tom irônico que já se pressente no título. Seria uma "pura
fábula", como se diz imprecisamente.
Não é pura fábula, porque
não saímos do filme como se tivéssemos visto um conto de fadas ou uma história de Disney.
Só o menino Giosué sai da história com essa sensação. Mesmo assim, é obviamente uma
fábula, pois sabemos que num
campo de concentração real
aquela estratégia de sobrevivência seria impossível.
Benigni dá mais uma volta
no parafuso, mostrando cenários não muito realistas, como
a dizer que aquilo não é mesmo
um campo de concentração
"real". Brinca, desse modo,
com duas implausibilidades: a
da história que Guido conta ao
filho e a da história que está
contando para nós, espectadores.
A idéia do filme é, assim,
muito inteligente. No fundo,
Benigni está tratando de algo
que afinal é o mais inacreditável de tudo, que é o próprio nazismo. Como é possível que alguém realmente tenha organizado o Holocausto? A ironia é
que todos nós sabemos que o
inacreditável aconteceu de fato.
Mas aqui fico com um novo
mal-estar. Toda a ironia e todos os paradoxos de Benigni
não impedem que vejamos esse
filme como um filme qualquer
-ou seja, sabendo que é uma
ficção, mas ainda assim acreditando provisoriamente nela. Se
"A Vida É Bela" se afirmasse
completamente como uma fantasia, sem sombra de realismo,
não teria problema nenhum e
não teria interesse nenhum.
A opressão dos senhores sobre
os camponeses na Idade Média
foi certamente brutal. Mas já
está tão distante no tempo que
é possível fazer filmes do gênero de "Robin Hood". Ou seja,
histórias que pressupõem nosso
conhecimento da opressão,
mas se concentram nas peripécias fantásticas do herói que
vence os malvados.
A ficção toma o primeiro plano; a violência real é apenas o
ponto de partida para que a
aventura aconteça.
Será que "A Vida É Bela" já
não estaria dando um primeiro
passo no sentido de jogar a violência nazista para uma época
remota, para o mundo do "era
uma vez"? As ambiguidades do
filme, a meu ver, derivam disso. "A Vida É Bela" parece estar dizendo, ao mesmo tempo,
que "era uma vez" e que "o
inacreditável aconteceu de fato". Por isso põe o personagem
no papel do contador de histórias, enquanto conta a sua, de
outro ponto de vista.
Mas a sua história, que admite o horror real do nazismo,
precisa por exemplo fazer com
que os outros prisioneiros do
campo de concentração mal tenham existência. Esfumam-se,
para que Guido seja possível;
não ligamos muito se morrem
ou não.
Acho o filme indefensável
nesse aspecto. É, aliás, o velho
problema dos filmes hollywoodianos: o herói que luta pela
justiça acaba sendo mais um
sujeito de sucesso, enquanto os
coadjuvantes sorriem, postos
num segundo plano bastante
injusto. A vitória do Bem termina sempre sendo um elogio
do privilégio de o mocinho loiro ficar com a herdeira rica.
Mas será que Benigni não está fazendo, aqui, uma nova
ironia? O filme bem que poderia passar por um jogo com o
cinema americano. Assim como Guido, Hollywood nos faz
acreditar em tudo. E, mesmo
fora de Hollywood, toda mentira pode passar por verdade,
desde que devidamente maquiada. "A Vida É Bela" faz, de
modo invertido, a mesma denúncia de "Truman Show - O
Show da Vida". Só que a denúncia de "Truman Show" não
é bem denúncia; não sabemos
se glorifica ou condena a situação; é uma denúncia hollywoodiana, sem a ironia e o tom
pungente que "A Vida É Bela"
tem de sobra.
Este artigo vai dando voltas e
voltas; acho que não acaba
mais. Só uma coisa para terminar.
Nas vésperas do nazismo, as
operetas vienenses eram o próprio e completo teatro da felicidade. "Schön ist die welt" (belo
é o mundo), dizia, em 1930,
Franz Léhar. "O País dos Sorrisos" tinha sido seu grande sucesso no ano anterior. Quem
quer que tenha ouvido essas
operetas entupiu-se de açúcar e
falsidade. Nunca a música é
tão valsante e musical; não há
disneylândia comparável a
tanta mentira organizada. Tão
mentirosa, tão organizada,
que passa por feliz.
Stendhal dizia que toda arte é
uma "promessa de felicidade";
nessas operetas, é como se a
promessa já tivesse sido cumprida -o que as faz um pouco
menos do que artísticas. Não
sei, afinal, se há felicidade possível sem um mínimo de memória da infelicidade. Uma situação que rejeitasse totalmente essa memória seria como que uma prisão, uma cegueira; o campo de concentração, melhor dizendo, da felicidade.
Essa, creio, é a crítica dos
frankfurtianos à indústria cultural, especialmente ao cinema
de Hollywood. Já "A Vida É Bela" seria uma espécie de opereta séria, se podemos assim dizer. Preserva a memória da infelicidade, sem dúvida. Mas
tratar o nazismo como "memória" e como simples "infelicidade" me parece um truque sobre
o qual nem o próprio Benigni
está tendo muito controle.
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