São Paulo, sexta, 3 de abril de 1998

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A cura do país doente

Ritual indígena na Bahia pretende expulsar o "espírito ruim" que os portugueses trouxeram para o Brasil em 1500; povos do Xingu podem participar da cerimônia
da Reportagem Local

Em 1500, quando os 13 navios comandados por Pedro Álvares Cabral deixaram a costa portuguesa e se embrenharam pelo Atlântico, aproximadamente 5 milhões de indígenas viviam do outro lado do oceano, na terra que depois se chamaria Brasil. Hoje, somam 340 mil, se tanto.
A estimativa é da Funai (Fundação Nacional do Índio) e já atormentou profundamente um paulistano de 34 anos, filho de txucarramães, que nasceu entre os guaranis, numa aldeia às margens da represa Billings (zona sul de São Paulo).
Menino, Kaka Werá Jecupé ouvia dos anciãos, à luz das fogueiras, relatos sobre os sucessivos massacres que dizimaram seus antepassados. As histórias lhe enchiam o sono de pesadelos.
Houve um tempo, até, em que rejeitou a própria origem. Não queria mais a sina de "comungar o sangue com povos que estão sempre dizendo adeus".
Negou-se índio e procurou se integrar inteiramente à cultura "dos brancos" -talvez para se proteger, ele também, de massacres. Chegou, inclusive, a completar o segundo grau numa escola pública. Depois, percebeu que "ninguém pode fugir de si mesmo".
Voltou a usar os colares de pena que ganhara de parentes, descobriu o prazer de fumar tabaco em cachimbos de madeira e sufocou a vergonha da pele parda e dos cabelos insistentemente lisos.
Desde 1992, coordena o Instituto Nova Tribo, com sede na cidade paulista de Itapecerica da Serra. É uma organização não-governamental e auto-sustentável, que promove cursos sobre fitoterapia, danças e mitos indígenas.
Apesar de nunca ter vencido por completo o medo do genocídio, Kaka conseguiu amenizá-lo quando compreendeu o porquê de tantos séculos de perseguição.
As respostas estavam menos nos ensaios acadêmicos que se habituara a devorar e mais, muito mais, nos ensinamentos de pajés que recolheu pelo país.
Ele aprendeu a acreditar que um espírito mal (o "mamaé", como diz) se apoderou do Brasil assim que a comitiva de Cabral chegou.
Apoderar-se, aqui, significa desarmonizar. "As nações indígenas viviam em equilíbrio antes de 1500", explica Kaka. "Ocorriam, claro, guerras entre tribos e rivalidades pessoais, só que tudo obedecia a uma lógica que se rompeu com a colonização."
O rompimento enfraqueceu a identidade cultural dos índios, deixando-os cada vez mais vulneráveis às ações dos brancos.
Em consequência, o país que os portugueses fundaram se tornou fraco também -"caiu doente", porque perdeu aquilo que Kaka chama de "alma ancestral". "Ficou sem referências. Fugiu de si próprio, exatamente como tentei fazer anos atrás."
O quinto centenário do descobrimento é, portanto, uma excelente oportunidade para o Brasil se reencontrar. De que maneira? Kaka dá as coordenadas com o projeto Arapoty, que surgiu há nove meses e agora começa a ganhar corpo.
Compõe-se de cinco etapas. A primeira deverá se desenrolar entre os próximos dias 19 e 22, na praia da Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália (BA).
Pajés, anciãos e dançadores de pelo menos sete tribos planejam se reunir para "expulsar o espírito ruim trazido pelos portugueses e curar o Brasil".
Três povos são do Parque Indígena do Xingu (MT): os kamayurás, yawalapitys e waurás. Outros três moram no Nordeste -os pataxós (Bahia), os cariris (Alagoas) e os fulni-ôs (Pernambuco). Haverá, ainda, representantes dos guaranis, que virão provavelmente do Espírito Santo e do Paraguai.
A "cura" se dará por meio de dois rituais, o quarup e o toré (veja quadro nesta página). Ambos irão se realizar de modo simplificado. "Interessa-nos o sentido simbólico das cerimônias, que podemos transmitir sem praticá-las integralmente", diz Kaka.
Simbolismo, por sinal, não faltará em Cabrália. Os rituais -que acontecerão exatamente onde se rezou a primeira missa do país- irão começar no dia do índio e terminar no dia do descobrimento.

Caminho e Caminha
Exorcizado o "mamaé", a próxima etapa do projeto Arapoty é o lançamento de um livro, também em abril.
"A Terra dos Mil Povos", escrito pelo próprio Kaka, contará como os índios viviam antes de Cabral aportar e como se relacionaram com os colonizadores. Não se trata, porém, de um estudo antropológico. O autor se apoiará apenas em narrativas míticas.
Vai resgatar, por exemplo, o curioso relato de um ancião xavante -que, no século 18, sonhou com o "amansamento do homem branco". Teve a visão de que os indígenas, valendo-se de danças e cantos rituais, diminuiriam, pouco a pouco, a fúria dos "invasores" europeus (leia trecho ao lado).
"São histórias interessantes", enfatiza Kaka, "por mostrarem que, se não puderam resistir concretamente à expansão branca, nossos ancestrais tentaram fazê-lo no terreno mitológico."
As terceira e quarta etapas do projeto estão previstas para 1999. Incluem:
* a criação, em Porto Seguro (BA), da Aldeia do Saber Sagrado -um centro de difusão da cultura indígena, construído de acordo com as concepções arquitetônicas dos kamayurás e dos yawalapitys;
* o encontro, também em Porto Seguro, de índios das três Américas, que discutirão estratégias conjuntas para o resgate de suas tradições.
A quinta e última etapa do projeto se concretizará no ano 2000. Representantes indígenas irão entregar à Organização das Nações Unidas a Carta do Caminho.
O documento apontará as principais conclusões do encontro de Porto Seguro. Pelo menos no título, ironizará a célebre correspondência que Pero Vaz de Caminha -escrivão da armada de Cabral- enviou para a corte portuguesa, dando notícias da terra nova.

Divergências
Embora afirme que o Arapoty -com custo estimado de R$ 170 mil- pretende "estragar a festa oficial dos 500 anos", Kaka não rejeita apoio dos "brancos".
Até agora, já conquistou dois. A Fundação Peirópolis -criada por um empresário de São Paulo para "difundir a educação em valores humanos"- editará o livro "A Terra dos Mil Povos".
Bruno Silveira, coordenador de projetos especiais da Fundação Odebrecht, está bancando as viagens de Kaka às nações indígenas que participarão do ritual de cura.
Também garimpa patrocínios junto à iniciativa privada. E negocia, com a Vera Cruz Florestal (uma das empresas do grupo Odebrecht), a cessão de um espaço na Bahia para a construção da Aldeia do Saber Sagrado.
"Em cinco séculos de Brasil, conseguimos, no máximo, tratar os índios de maneira politicamente correta. É muito pouco. Continuamos nutrindo uma atitude soberba em relação às suas tradições. O projeto Arapoty tenta virar o jogo. Por isso o apóio", argumenta Silveira.
O próprio governo não se nega a auxiliar Kaka. No mês passado, o índio esteve em Brasília e procurou o ministro Lauro Moreira, presidente da Comissão Nacional para as Comemorações do 5º Centenário do Descobrimento.
Ponderou que só poderá levar os povos do Xingu à Bahia se a Força Aérea os transportar. E pediu à comissão que sirva de intermediária nas negociações com a Aeronáutica. "Vamos ajudar", disse o ministro à Folha.
Nem todos, no entanto, encaram as idéias de Kaka com bons olhos. "O quarup é uma celebração muito especial, que nunca ocorreu fora do Xingu. Realizá-la na Coroa Vermelha talvez seja o primeiro passo para banalizá-la", pondera Vicente Luiz de Almeida, funcionário da Funai que trabalha com as comunidades xinguanas.
"O ritual de cura parece coisa para branco ver", reforça o guarani Timóteo da Silva, que preside a Associação Indígena da Aldeia Morro da Saudade, em São Paulo. "Os portugueses nos legaram, sim, um espírito mal. Só não sei se, com dança na Bahia, nossa situação vai melhorar."
(ARMANDO ANTENORE)



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