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A cura do país doente
Ritual indígena na Bahia pretende
expulsar o "espírito ruim" que os portugueses
trouxeram para o Brasil em 1500; povos do
Xingu podem participar da cerimônia
da Reportagem Local
Em 1500, quando os 13 navios
comandados por Pedro Álvares
Cabral deixaram a costa portuguesa e se embrenharam pelo Atlântico, aproximadamente 5 milhões
de indígenas viviam do outro lado
do oceano, na terra que depois se
chamaria Brasil. Hoje, somam 340
mil, se tanto.
A estimativa é da Funai (Fundação Nacional do Índio) e já atormentou profundamente um paulistano de 34 anos, filho de txucarramães, que nasceu entre os guaranis, numa aldeia às margens da
represa Billings (zona sul de São
Paulo).
Menino, Kaka Werá Jecupé ouvia dos anciãos, à luz das fogueiras, relatos sobre os sucessivos
massacres que dizimaram seus antepassados. As histórias lhe enchiam o sono de pesadelos.
Houve um tempo, até, em que
rejeitou a própria origem. Não
queria mais a sina de "comungar o
sangue com povos que estão sempre dizendo adeus".
Negou-se índio e procurou se integrar inteiramente à cultura "dos
brancos" -talvez para se proteger, ele também, de massacres.
Chegou, inclusive, a completar o
segundo grau numa escola pública. Depois, percebeu que "ninguém pode fugir de si mesmo".
Voltou a usar os colares de pena
que ganhara de parentes, descobriu o prazer de fumar tabaco em
cachimbos de madeira e sufocou a
vergonha da pele parda e dos cabelos insistentemente lisos.
Desde 1992, coordena o Instituto
Nova Tribo, com sede na cidade
paulista de Itapecerica da Serra. É
uma organização não-governamental e auto-sustentável, que
promove cursos sobre fitoterapia,
danças e mitos indígenas.
Apesar de nunca ter vencido por
completo o medo do genocídio,
Kaka conseguiu amenizá-lo quando compreendeu o porquê de tantos séculos de perseguição.
As respostas estavam menos nos
ensaios acadêmicos que se habituara a devorar e mais, muito
mais, nos ensinamentos de pajés
que recolheu pelo país.
Ele aprendeu a acreditar que um
espírito mal (o "mamaé", como
diz) se apoderou do Brasil assim
que a comitiva de Cabral chegou.
Apoderar-se, aqui, significa desarmonizar. "As nações indígenas
viviam em equilíbrio antes de
1500", explica Kaka. "Ocorriam,
claro, guerras entre tribos e rivalidades pessoais, só que tudo obedecia a uma lógica que se rompeu
com a colonização."
O rompimento enfraqueceu a
identidade cultural dos índios,
deixando-os cada vez mais vulneráveis às ações dos brancos.
Em consequência, o país que os
portugueses fundaram se tornou
fraco também -"caiu doente",
porque perdeu aquilo que Kaka
chama de "alma ancestral". "Ficou
sem referências. Fugiu de si próprio, exatamente como tentei fazer anos atrás."
O quinto centenário do descobrimento é, portanto, uma excelente oportunidade para o Brasil
se reencontrar. De que maneira?
Kaka dá as coordenadas com o
projeto Arapoty, que surgiu há
nove meses e agora começa a ganhar corpo.
Compõe-se de cinco etapas. A
primeira deverá se desenrolar entre os próximos dias 19 e 22, na
praia da Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália (BA).
Pajés, anciãos e dançadores de
pelo menos sete tribos planejam se
reunir para "expulsar o espírito
ruim trazido pelos portugueses e
curar o Brasil".
Três povos são do Parque Indígena do Xingu (MT): os kamayurás, yawalapitys e waurás. Outros
três moram no Nordeste -os pataxós (Bahia), os cariris (Alagoas)
e os fulni-ôs (Pernambuco). Haverá, ainda, representantes dos guaranis, que virão provavelmente do
Espírito Santo e do Paraguai.
A "cura" se dará por meio de
dois rituais, o quarup e o toré (veja
quadro nesta página). Ambos irão
se realizar de modo simplificado.
"Interessa-nos o sentido simbólico das cerimônias, que podemos
transmitir sem praticá-las integralmente", diz Kaka.
Simbolismo, por sinal, não faltará em Cabrália. Os rituais -que
acontecerão exatamente onde se
rezou a primeira missa do país-
irão começar no dia do índio e terminar no dia do descobrimento.
Caminho e Caminha
Exorcizado o "mamaé", a próxima etapa do projeto Arapoty é o
lançamento de um livro, também
em abril.
"A Terra dos Mil Povos", escrito
pelo próprio Kaka, contará como
os índios viviam antes de Cabral
aportar e como se relacionaram
com os colonizadores. Não se trata, porém, de um estudo antropológico. O autor se apoiará apenas
em narrativas míticas.
Vai resgatar, por exemplo, o curioso relato de um ancião xavante
-que, no século 18, sonhou com
o "amansamento do homem
branco". Teve a visão de que os indígenas, valendo-se de danças e
cantos rituais, diminuiriam, pouco a pouco, a fúria dos "invasores"
europeus (leia trecho ao lado).
"São histórias interessantes",
enfatiza Kaka, "por mostrarem
que, se não puderam resistir concretamente à expansão branca,
nossos ancestrais tentaram fazê-lo
no terreno mitológico."
As terceira e quarta etapas do
projeto estão previstas para 1999.
Incluem:
* a criação, em Porto Seguro
(BA), da Aldeia do Saber Sagrado
-um centro de difusão da cultura
indígena, construído de acordo
com as concepções arquitetônicas
dos kamayurás e dos yawalapitys;
* o encontro, também em Porto
Seguro, de índios das três Américas, que discutirão estratégias
conjuntas para o resgate de suas
tradições.
A quinta e última etapa do projeto se concretizará no ano 2000. Representantes indígenas irão entregar à Organização das Nações
Unidas a Carta do Caminho.
O documento apontará as principais conclusões do encontro de
Porto Seguro. Pelo menos no título, ironizará a célebre correspondência que Pero Vaz de Caminha
-escrivão da armada de Cabral-
enviou para a corte portuguesa,
dando notícias da terra nova.
Divergências
Embora afirme que o Arapoty
-com custo estimado de R$ 170
mil- pretende "estragar a festa
oficial dos 500 anos", Kaka não rejeita apoio dos "brancos".
Até agora, já conquistou dois. A
Fundação Peirópolis -criada por
um empresário de São Paulo para
"difundir a educação em valores
humanos"- editará o livro "A
Terra dos Mil Povos".
Bruno Silveira, coordenador de
projetos especiais da Fundação
Odebrecht, está bancando as viagens de Kaka às nações indígenas
que participarão do ritual de cura.
Também garimpa patrocínios
junto à iniciativa privada. E negocia, com a Vera Cruz Florestal
(uma das empresas do grupo Odebrecht), a cessão de um espaço na
Bahia para a construção da Aldeia
do Saber Sagrado.
"Em cinco séculos de Brasil,
conseguimos, no máximo, tratar
os índios de maneira politicamente correta. É muito pouco. Continuamos nutrindo uma atitude soberba em relação às suas tradições. O projeto Arapoty tenta virar
o jogo. Por isso o apóio", argumenta Silveira.
O próprio governo não se nega a
auxiliar Kaka. No mês passado, o
índio esteve em Brasília e procurou o ministro Lauro Moreira,
presidente da Comissão Nacional
para as Comemorações do 5º Centenário do Descobrimento.
Ponderou que só poderá levar os
povos do Xingu à Bahia se a Força
Aérea os transportar. E pediu à comissão que sirva de intermediária
nas negociações com a Aeronáutica. "Vamos ajudar", disse o ministro à Folha.
Nem todos, no entanto, encaram as idéias de Kaka com bons
olhos. "O quarup é uma celebração muito especial, que nunca
ocorreu fora do Xingu. Realizá-la
na Coroa Vermelha talvez seja o
primeiro passo para banalizá-la",
pondera Vicente Luiz de Almeida,
funcionário da Funai que trabalha
com as comunidades xinguanas.
"O ritual de cura parece coisa
para branco ver", reforça o guarani Timóteo da Silva, que preside a
Associação Indígena da Aldeia
Morro da Saudade, em São Paulo.
"Os portugueses nos legaram,
sim, um espírito mal. Só não sei
se, com dança na Bahia, nossa situação vai melhorar."
(ARMANDO ANTENORE)
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