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RÉPLICA
Jornalismo lisonjeiro
VICENTE SAMPAIO
especial para a Folha
É lamentável o tom virulento que
o senhor Eduardo Giannetti utilizou em seu artigo "A "virtus dormitiva" da CNBB", publicado nesta
Folha em 25 de fevereiro, no qual
investe contra o documento base
da Campanha da Fraternidade
"Sem Trabalho... Por quê?". O articulista pratica um polemismo que
ou apresenta-se dissimuladamente a favor de certos interesses ideológicos ou vive de si mesmo.
Seu artigo inicia-se montando
um quadro do mundo "pré-queda
do Muro de Berlim", quando tudo
estaria professado pelas leis do
materialismo dialético. A esse
messianismo da esquerda, o autor
relaciona o messianismo católico,
cuja mais recente manifestação seria o documento da CNBB.
Schumpeter teria captado, segundo o artigo, o "espírito daquele
tempo" ao ironizar, quando de um
terremoto ocorrido em Tóquio,
que pelo menos no caso o capitalismo não fora responsabilizado por
nada. É deslocada tal menção à
graça de Schumpeter contra marxistas vulgares.
Em suas previsões sobre o capitalismo, Schumpeter pinta o quadro de uma crise ética dos valores
burgueses que enriqueceria muito
o debate em que se envolve o documento, cuja mensagem central expressa justamente o temor de uma
desagregação da sociedade ocasionada pela submissão dos valores
éticos à lógica do mercado.
Após colocações preconceituosas sobre o marxismo, o artigo cita
Molière para mostrar como igreja
e marxistas pensam qual médicos
escolásticos. A comparação, contudo, é infeliz. Molière arremete
contra uma escolástica degenerada
e estéril. A virtus dormitiva que inventa em "O Burguês Fidalgo" como causa do sono provocado pelo
ópio consiste em um argumento
tautológico sem validade, que explica o fato pelo fato.
É dessa espécie de argumentos de
que a esquerda lançaria mão e que
agora estaria subjacente ao texto
da CNBB. Mas a ironia da virtus
dormitiva refere-se a um argumento tautológico ou dogmático?
Equivalem os dois tipos de argumento? Não. A tautologia nada diz
além do fato que pretende explicar,
ao passo que o argumento dogmático pressupõe uma causa primeira
para todo fato, apresentando um
conteúdo novo para além do fato.
Se se argumenta, no campo da
religião, que a assunção de uma
primeira causa que valha por si
mesma, de um dogma (por exemplo, que Deus existe e é a verdade),
é uma tautologia, então discute-se
uma questão de fé. A ironia da virtus dormitiva já fora utilizada por
Nietzsche contra Kant. Ao retomá-lo para esclarecer um vínculo entre
cristianismo e marxismo, sem
contextualização e problematização, as curtas linhas do artigo, e
não densas linhas de um aforismo
nietzschiano, falam pelo filisteu.
Destemperado, o artigo passa ao
ataque direto ao documento, qualificando-o de "imprecação raivosa e cangaço ideológico", de um
texto "pífio na argumentação",
que "lateja ódio, rancor e ressentimento por todos os poros".
Diz o artigo: "O neoliberalismo,
sustentam os bispos, é "fruto do pecado", que tem como resultado
uma "cultura da morte" na qual "cada vez mais os espertalhões e os
sem-ética vão faturando e consumindo mais". É ler para crer".
Trata-se de uma colagem de expressões de diferentes páginas do
documento da CNBB. Deve-se ter
em conta que a expressão "neoliberalismo" é sempre referida pelos
bispos a uma economia de mercado que não aceita amarras, ao "sistema neoliberal exacerbado" (parágrafo 104), ao "capitalismo sem
freios éticos" (104 e 105).
Tal definição não é técnica, mas
atende à pretensão de suscitar o
debate cristão acerca da realidade
econômica causadora do desemprego, com o objetivo de incentivar a ação concreta dos católicos
contra ela. Mas em que contextos a
CNBB fala de: 1. "pecado"; 2. "cultura da morte"; e 3. "espertalhões
e... sem-ética"?
1. O pecado participa de todas as
explicações cristãs para os males
do mundo que advenham do homem. Assim, se o tema central do
documento da CNBB é a recusa da
atual e maléfica tendência a um
privilégio da ordem econômica sobre as demais esferas da vida humana e a asseveração de que o homem deve governar a economia e
não ser governado por ela, é coerente afirmar ser o pecado uma
causa do dito capitalismo sem
freios éticos, pois a economia é um
produto humano.
Por isso consta do documento:
"São várias as causas do desemprego. Algumas estão relacionadas
aos comportamentos pecaminosos individuais" (parágrafo 104).
Sempre que o mundo econômico
parecer antepor à igreja uma crise
ética, o assunto será o pecado. Para
um cristão, não "é ler para crer",
mas crer para ler.
2. A expressão "cultura de morte" (parágrafo 108) de que fala a
CNBB não se refere exatamente ao
neoliberalismo, mas a toda e qualquer idolatria, isto é, à aquiescência a todo princípio prático que vá
contra o mandamento de amar a
Deus, visto como fonte da vida,
acima de todas as coisas. Tendo
identificado a tendência de uma
supremacia dos princípios econômicos sobre valores cristãos, o documento atribui a tal tendência, de
modo coerente com o seu credo, o
pecado de idolatria, que, como toda forma de pecado, vai contra a
vida e a favor da morte.
3. "Espertalhões e... sem ética"
(parágrafo 106) para se referir
àqueles que se deixam levar pela
idolatria é um eufemismo. Mais
preciso seria dizer "pecadores",
pois se trata daqueles que incidem
nos já citados "comportamentos
individuais pecaminosos". Aqui, a
igreja apenas dá nome aos bois.
Giannetti prossegue citando um
trecho do parágrafo 121 e tacha-o
de produto ou da ignorância ou da
má-fé. Eis o texto da CNBB: "Esta
coluna coloca no ringue do livre-mercado a exacerbação da luta livre entre todos e na qual o mais
forte vence. Essa cultura da luta livre, sem ética e sem moral, sob o
império da violência, trabalha
muito com o espetáculo do grotesco, a excitação dos desejos mais
profundos no ser humano, especialmente a força do erotismo, da
sensualidade e da violência".
Lembrando que tais palavras se
inserem no contexto de uma crítica aos excessos de uma tendência
da ideologia liberal, a qual está
fundada na defesa de uma economia ultracompetitiva que ameaça
ruir os princípios éticos do cristianismo, não parece haver nelas má-fé e improcedência.
O único comentário de Giannetti
ao parágrafo é o seguinte: "Quanto
ao dom do neoliberalismo de excitar "a força do erotismo, da sexualidade e da violência", só chamando
um psicanalista para desvendar o
mistério...". Ora, se ele tem tanta fé
nas explicações psicanalistas sobre
religião, deveria estudar os textos
bíblicos, que apresentam material
bem mais interessante para isso.
Ademais, quem há de negar o crescente espetáculo do grotesco?
Deixando de lado a crítica ao jornalista, resta perguntar: qual é a legitimidade e a oportunidade do
documento da Campanha da Fraternidade?
O desemprego crescente é um
problema mundial cuja principal
causa é obviamente a nova ordem
econômica. No Brasil, ele se mostra mais cruel, dado que a sociedade brasileira apresenta uma multidão de excluídos. De manifestações sobre esse fenômeno provindas da sociedade é que se monta o
debate em torno das questões que
ele antepõe ao pensamento e à
ação, ganhando maior importância neste debate as pessoas e instituições que o montam.
Portanto mostra-se muito oportuna esta campanha da CNBB,
porque não desvia os olhos do problema, coloca seu ponto de vista
abertamente e, dentro da esfera legítima de sua influência -que está
inserida no contexto maior de uma
ordem jurídica laica-, incentiva
medidas práticas contra ele.
Não é a corrompida igreja da virtus dormitiva que se expressa no
documento-base da Campanha da
Fraternidade. É uma igreja que se
esforça por superar a sua rigidez
institucional ao resgatar o sentimento mais originário do cristianismo: o amor fraterno da primeira "Carta aos Coríntios" -e ao
qual se refere hipócrita ou cinicamente o senhor Giannetti quando
encerra seu artigo: "Prefiro crer,
num gesto de caridade cristã, que
nem todos os 396 bispos brasileiros leram de fato o panfleto que assinam".
Infelizmente, o jornalismo que
aqui criticamos é cada vez mais
frequente. Muitos jornalistas só
dominam a retórica dos meios de
comunicação e, irresponsavelmente, argumentam preocupados
apenas com a sensação que podem
causar, para o agrado -não se sabe se consciente ou não- de uma
ideologia em detrimento da outra.
Esses jornalistas parecem-se com
aqueles antigos gregos que enganavam aos outros e a si mesmos dizendo-se sábios, homens cuja profissão foi definida por Sócrates como a "lisonjaria", que "é própria
do espírito certeiro, arrojado e por
natureza hábil no entretenimento
das pessoas".
Vicente Sampaio é mestrando em filosofia pela
Unicamp
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