São Paulo, Sábado, 03 de Abril de 1999
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RÉPLICA
Jornalismo lisonjeiro

VICENTE SAMPAIO
especial para a Folha

É lamentável o tom virulento que o senhor Eduardo Giannetti utilizou em seu artigo "A "virtus dormitiva" da CNBB", publicado nesta Folha em 25 de fevereiro, no qual investe contra o documento base da Campanha da Fraternidade "Sem Trabalho... Por quê?". O articulista pratica um polemismo que ou apresenta-se dissimuladamente a favor de certos interesses ideológicos ou vive de si mesmo.
Seu artigo inicia-se montando um quadro do mundo "pré-queda do Muro de Berlim", quando tudo estaria professado pelas leis do materialismo dialético. A esse messianismo da esquerda, o autor relaciona o messianismo católico, cuja mais recente manifestação seria o documento da CNBB.
Schumpeter teria captado, segundo o artigo, o "espírito daquele tempo" ao ironizar, quando de um terremoto ocorrido em Tóquio, que pelo menos no caso o capitalismo não fora responsabilizado por nada. É deslocada tal menção à graça de Schumpeter contra marxistas vulgares.
Em suas previsões sobre o capitalismo, Schumpeter pinta o quadro de uma crise ética dos valores burgueses que enriqueceria muito o debate em que se envolve o documento, cuja mensagem central expressa justamente o temor de uma desagregação da sociedade ocasionada pela submissão dos valores éticos à lógica do mercado.
Após colocações preconceituosas sobre o marxismo, o artigo cita Molière para mostrar como igreja e marxistas pensam qual médicos escolásticos. A comparação, contudo, é infeliz. Molière arremete contra uma escolástica degenerada e estéril. A virtus dormitiva que inventa em "O Burguês Fidalgo" como causa do sono provocado pelo ópio consiste em um argumento tautológico sem validade, que explica o fato pelo fato.
É dessa espécie de argumentos de que a esquerda lançaria mão e que agora estaria subjacente ao texto da CNBB. Mas a ironia da virtus dormitiva refere-se a um argumento tautológico ou dogmático? Equivalem os dois tipos de argumento? Não. A tautologia nada diz além do fato que pretende explicar, ao passo que o argumento dogmático pressupõe uma causa primeira para todo fato, apresentando um conteúdo novo para além do fato.
Se se argumenta, no campo da religião, que a assunção de uma primeira causa que valha por si mesma, de um dogma (por exemplo, que Deus existe e é a verdade), é uma tautologia, então discute-se uma questão de fé. A ironia da virtus dormitiva já fora utilizada por Nietzsche contra Kant. Ao retomá-lo para esclarecer um vínculo entre cristianismo e marxismo, sem contextualização e problematização, as curtas linhas do artigo, e não densas linhas de um aforismo nietzschiano, falam pelo filisteu.
Destemperado, o artigo passa ao ataque direto ao documento, qualificando-o de "imprecação raivosa e cangaço ideológico", de um texto "pífio na argumentação", que "lateja ódio, rancor e ressentimento por todos os poros".
Diz o artigo: "O neoliberalismo, sustentam os bispos, é "fruto do pecado", que tem como resultado uma "cultura da morte" na qual "cada vez mais os espertalhões e os sem-ética vão faturando e consumindo mais". É ler para crer".
Trata-se de uma colagem de expressões de diferentes páginas do documento da CNBB. Deve-se ter em conta que a expressão "neoliberalismo" é sempre referida pelos bispos a uma economia de mercado que não aceita amarras, ao "sistema neoliberal exacerbado" (parágrafo 104), ao "capitalismo sem freios éticos" (104 e 105).
Tal definição não é técnica, mas atende à pretensão de suscitar o debate cristão acerca da realidade econômica causadora do desemprego, com o objetivo de incentivar a ação concreta dos católicos contra ela. Mas em que contextos a CNBB fala de: 1. "pecado"; 2. "cultura da morte"; e 3. "espertalhões e... sem-ética"?
1. O pecado participa de todas as explicações cristãs para os males do mundo que advenham do homem. Assim, se o tema central do documento da CNBB é a recusa da atual e maléfica tendência a um privilégio da ordem econômica sobre as demais esferas da vida humana e a asseveração de que o homem deve governar a economia e não ser governado por ela, é coerente afirmar ser o pecado uma causa do dito capitalismo sem freios éticos, pois a economia é um produto humano.
Por isso consta do documento: "São várias as causas do desemprego. Algumas estão relacionadas aos comportamentos pecaminosos individuais" (parágrafo 104). Sempre que o mundo econômico parecer antepor à igreja uma crise ética, o assunto será o pecado. Para um cristão, não "é ler para crer", mas crer para ler.
2. A expressão "cultura de morte" (parágrafo 108) de que fala a CNBB não se refere exatamente ao neoliberalismo, mas a toda e qualquer idolatria, isto é, à aquiescência a todo princípio prático que vá contra o mandamento de amar a Deus, visto como fonte da vida, acima de todas as coisas. Tendo identificado a tendência de uma supremacia dos princípios econômicos sobre valores cristãos, o documento atribui a tal tendência, de modo coerente com o seu credo, o pecado de idolatria, que, como toda forma de pecado, vai contra a vida e a favor da morte.
3. "Espertalhões e... sem ética" (parágrafo 106) para se referir àqueles que se deixam levar pela idolatria é um eufemismo. Mais preciso seria dizer "pecadores", pois se trata daqueles que incidem nos já citados "comportamentos individuais pecaminosos". Aqui, a igreja apenas dá nome aos bois.
Giannetti prossegue citando um trecho do parágrafo 121 e tacha-o de produto ou da ignorância ou da má-fé. Eis o texto da CNBB: "Esta coluna coloca no ringue do livre-mercado a exacerbação da luta livre entre todos e na qual o mais forte vence. Essa cultura da luta livre, sem ética e sem moral, sob o império da violência, trabalha muito com o espetáculo do grotesco, a excitação dos desejos mais profundos no ser humano, especialmente a força do erotismo, da sensualidade e da violência".
Lembrando que tais palavras se inserem no contexto de uma crítica aos excessos de uma tendência da ideologia liberal, a qual está fundada na defesa de uma economia ultracompetitiva que ameaça ruir os princípios éticos do cristianismo, não parece haver nelas má-fé e improcedência.
O único comentário de Giannetti ao parágrafo é o seguinte: "Quanto ao dom do neoliberalismo de excitar "a força do erotismo, da sexualidade e da violência", só chamando um psicanalista para desvendar o mistério...". Ora, se ele tem tanta fé nas explicações psicanalistas sobre religião, deveria estudar os textos bíblicos, que apresentam material bem mais interessante para isso. Ademais, quem há de negar o crescente espetáculo do grotesco?
Deixando de lado a crítica ao jornalista, resta perguntar: qual é a legitimidade e a oportunidade do documento da Campanha da Fraternidade?
O desemprego crescente é um problema mundial cuja principal causa é obviamente a nova ordem econômica. No Brasil, ele se mostra mais cruel, dado que a sociedade brasileira apresenta uma multidão de excluídos. De manifestações sobre esse fenômeno provindas da sociedade é que se monta o debate em torno das questões que ele antepõe ao pensamento e à ação, ganhando maior importância neste debate as pessoas e instituições que o montam.
Portanto mostra-se muito oportuna esta campanha da CNBB, porque não desvia os olhos do problema, coloca seu ponto de vista abertamente e, dentro da esfera legítima de sua influência -que está inserida no contexto maior de uma ordem jurídica laica-, incentiva medidas práticas contra ele.
Não é a corrompida igreja da virtus dormitiva que se expressa no documento-base da Campanha da Fraternidade. É uma igreja que se esforça por superar a sua rigidez institucional ao resgatar o sentimento mais originário do cristianismo: o amor fraterno da primeira "Carta aos Coríntios" -e ao qual se refere hipócrita ou cinicamente o senhor Giannetti quando encerra seu artigo: "Prefiro crer, num gesto de caridade cristã, que nem todos os 396 bispos brasileiros leram de fato o panfleto que assinam".
Infelizmente, o jornalismo que aqui criticamos é cada vez mais frequente. Muitos jornalistas só dominam a retórica dos meios de comunicação e, irresponsavelmente, argumentam preocupados apenas com a sensação que podem causar, para o agrado -não se sabe se consciente ou não- de uma ideologia em detrimento da outra.
Esses jornalistas parecem-se com aqueles antigos gregos que enganavam aos outros e a si mesmos dizendo-se sábios, homens cuja profissão foi definida por Sócrates como a "lisonjaria", que "é própria do espírito certeiro, arrojado e por natureza hábil no entretenimento das pessoas".


Vicente Sampaio é mestrando em filosofia pela Unicamp


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