São Paulo, quinta-feira, 03 de maio de 2001

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CRÍTICA

Época rica alimenta debate até hoje

FERNANDO MARQUES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os artistas da vanguarda teatral russa, nas três primeiras décadas do século 20, viveram tempos de fazer inveja ao morno ano 2001, excluído, é claro, o trágico desenlace stalinista por volta de 1930.
Os quatro capítulos de "Stanislavski, Meierhold & Cia.", conjunto de ensaios de Jacó Guinsburg sobre a cena russa e soviética, em alguns momentos lembram, de fato, a estrutura dos dramas ou romances mais movimentados. É o caso, particularmente, da primeira parte do livro.
Resumindo e comentando as idéias e práticas estéticas de Stanislavski, líder do Teatro de Arte de Moscou, criado em 1898, e de Meyerhold, discípulo rebelde e independente, Guinsburg traça o mapa de uma época passionalmente rica em formulações novas, algumas delas capazes de alimentar, ainda hoje, o debate teatral.
O inquieto Meyerhold interpretou o papel de Trepliov, artista inconformado com as formas fósseis de teatro e de vida, na peça "A Gaivota", de Tchecov, que se transformaria no primeiro espetáculo importante do Teatro de Arte.
Seus gestos extremos em cena, já naquele momento, contrariavam a contenção stanislavskiana, que, por sua vez, contrapunha-se aos hábitos e estereótipos melodramáticos.
Meyerhold viria a contestar o realismo na esteira de influências basicamente simbolistas, que o levavam a buscar, na arte, a "quintessência da vida". O naturalismo denso praticado pela companhia seria interrogado em nome dos recursos formais exclusivos do palco, que, para Meyerhold, devia abster-se de imitar a realidade.
Suas pesquisas, informa Guinsburg, envolvem as fases simbolista, esteticista, construtivista e sintética. O movimento dos atores é concebido plasticamente, transformado em coreografia, com a qual dialogam a luz e os elementos cenográficos, que tendem ao abstrato. A trajetória do diretor, que encenaria largos espetáculos "para as massas" depois da Revolução de 1917, colaborando com o poeta e autor Maiakovski, desenvolve-se no sentido da geometria, desenhando grandes quadros ligados por sugestões sensoriais.
A segunda parte do volume é dedicada aos encenadores formados sob a asa de Stanislavski e aos artistas e teóricos contemporâneos do mestre. Entre estes encontra-se Evreinov, que formula os conceitos de "instinto de transformação" e de "monodrama".
Os seres humanos disporiam, explica Guinsburg, de "um pré-estético instinto primordial de transmutação", o desejo de mudar e de "ser outro", ou seja, a base do teatro. Evreinov reclamava o teatro puro, desvinculado da cópia da realidade, assim como do "ato sacrossanto" e da propaganda política. Já o monodrama antecipa a subjetivação radical operada pelo expressionismo alemão nos anos 10 e 20.
O próprio Evreivov, no entanto, irá encenar gigantesco espetáculo em 1920: 500 músicos, oito mil atores, 100 mil espectadores, chamado "A Tomada do Palácio de Inverno". Pode-se imaginar o efeito catártico do espetáculo no terceiro aniversário da revolução. A noção de que artistas e público devem participar da mesma festa chegou então ao limite do inverossímil.
Outra figura importante foi Tairov, que parte da distinção clara entre arte e vida, situando-se, porém, tão distante de Stanislavski quanto de Meyerhold. Para ele, observa Jacó Guinsburg, "a preocupação com a forma não quer dizer que se possa expulsar sumariamente a emoção do palco", como Meyerhold pretendia.
Tairov atribui peso equivalente a ator e a encenador. As concepções contraditórias formuladas naqueles anos respondem, ainda agora, pela vitalidade e pelos impasses teatrais.
O terceiro capítulo lembra o polonês Boleslavski, que levou os ensinamentos do Teatro de Arte aos Estados Unidos, com repercussão sobre o Actors Studio nos anos 50. O Habima, em que atuou Vakhtangov, discípulo de Stanislavski, e o Teatro Ídiche de Estado, renovadores da cena judaica, são também recenseados por Guinsburg, que encerra o livro com a exposição do que foi o teatro russo no século 19, resumindo ainda o famoso e inconcluso método de interpretação stanislavskiano.
Não existe em português, ao que se saiba, trabalho semelhante, dedicado à resenha minuciosa das idéias e das realizações das vanguardas russas e soviéticas. A experiência descrita no livro, embora atropelada pela intolerância política, durou o bastante para influir sobre a arte de outros povos.


Fernando Marques é jornalista, professor do Centro Universitário de Brasília e doutorando em literatura brasileira na Universidade de Brasília

Stanislavski, Meierhold & Cia.
    
Autor: Jacó Guinsburg
Editora: Perspectiva (0/xx/11/ 3885-8388)
Quanto: a definir (238 págs.)




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