|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CRÍTICA
Época rica alimenta debate até hoje
FERNANDO MARQUES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Os artistas da vanguarda
teatral russa, nas três primeiras décadas do século 20, viveram
tempos de fazer inveja ao morno
ano 2001, excluído, é claro, o trágico desenlace stalinista por volta
de 1930.
Os quatro capítulos de "Stanislavski, Meierhold & Cia.", conjunto de ensaios de Jacó Guinsburg sobre a cena russa e soviética, em alguns momentos lembram, de fato, a estrutura dos dramas ou romances mais movimentados. É o caso, particularmente, da primeira parte do livro.
Resumindo e comentando as
idéias e práticas estéticas de Stanislavski, líder do Teatro de Arte
de Moscou, criado em 1898, e de
Meyerhold, discípulo rebelde e
independente, Guinsburg traça o
mapa de uma época passionalmente rica em formulações novas, algumas delas capazes de alimentar, ainda hoje, o debate teatral.
O inquieto Meyerhold interpretou o papel de Trepliov, artista inconformado com as formas fósseis de teatro e de vida, na peça "A
Gaivota", de Tchecov, que se
transformaria no primeiro espetáculo importante do Teatro de
Arte.
Seus gestos extremos em cena,
já naquele momento, contrariavam a contenção stanislavskiana,
que, por sua vez, contrapunha-se
aos hábitos e estereótipos melodramáticos.
Meyerhold viria a contestar o
realismo na esteira de influências
basicamente simbolistas, que o levavam a buscar, na arte, a "quintessência da vida". O naturalismo
denso praticado pela companhia
seria interrogado em nome dos
recursos formais exclusivos do
palco, que, para Meyerhold, devia
abster-se de imitar a realidade.
Suas pesquisas, informa Guinsburg, envolvem as fases simbolista, esteticista, construtivista e sintética. O movimento dos atores é
concebido plasticamente, transformado em coreografia, com a
qual dialogam a luz e os elementos cenográficos, que tendem ao
abstrato. A trajetória do diretor,
que encenaria largos espetáculos
"para as massas" depois da Revolução de 1917, colaborando com o
poeta e autor Maiakovski, desenvolve-se no sentido da geometria,
desenhando grandes quadros ligados por sugestões sensoriais.
A segunda parte do volume é
dedicada aos encenadores formados sob a asa de Stanislavski e aos
artistas e teóricos contemporâneos do mestre. Entre estes encontra-se Evreinov, que formula
os conceitos de "instinto de transformação" e de "monodrama".
Os seres humanos disporiam,
explica Guinsburg, de "um pré-estético instinto primordial de
transmutação", o desejo de mudar e de "ser outro", ou seja, a base do teatro. Evreinov reclamava
o teatro puro, desvinculado da cópia da realidade, assim como do
"ato sacrossanto" e da propaganda política. Já o monodrama antecipa a subjetivação radical operada pelo expressionismo alemão
nos anos 10 e 20.
O próprio Evreivov, no entanto,
irá encenar gigantesco espetáculo
em 1920: 500 músicos, oito mil
atores, 100 mil espectadores, chamado "A Tomada do Palácio de
Inverno". Pode-se imaginar o
efeito catártico do espetáculo no
terceiro aniversário da revolução.
A noção de que artistas e público
devem participar da mesma festa
chegou então ao limite do inverossímil.
Outra figura importante foi Tairov, que parte da distinção clara
entre arte e vida, situando-se, porém, tão distante de Stanislavski
quanto de Meyerhold. Para ele,
observa Jacó Guinsburg, "a preocupação com a forma não quer
dizer que se possa expulsar sumariamente a emoção do palco", como Meyerhold pretendia.
Tairov atribui peso equivalente
a ator e a encenador. As concepções contraditórias formuladas
naqueles anos respondem, ainda
agora, pela vitalidade e pelos impasses teatrais.
O terceiro capítulo lembra o polonês Boleslavski, que levou os ensinamentos do Teatro de Arte aos
Estados Unidos, com repercussão
sobre o Actors Studio nos anos 50.
O Habima, em que atuou Vakhtangov, discípulo de Stanislavski,
e o Teatro Ídiche de Estado, renovadores da cena judaica, são também recenseados por Guinsburg,
que encerra o livro com a exposição do que foi o teatro russo no
século 19, resumindo ainda o famoso e inconcluso método de interpretação stanislavskiano.
Não existe em português, ao
que se saiba, trabalho semelhante,
dedicado à resenha minuciosa
das idéias e das realizações das
vanguardas russas e soviéticas. A
experiência descrita no livro, embora atropelada pela intolerância
política, durou o bastante para influir sobre a arte de outros povos.
Fernando Marques é jornalista, professor do Centro Universitário de Brasília e
doutorando em literatura brasileira na
Universidade de Brasília
Stanislavski, Meierhold & Cia.
Autor: Jacó Guinsburg
Editora: Perspectiva (0/xx/11/ 3885-8388)
Quanto: a definir (238 págs.)
Texto Anterior: Militância editorial Próximo Texto: Frases Índice
|