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São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

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Brasil recebe o maior sucesso comercial da escritora Virginia Woolf, "Flush: Memórias de um Cão"

Aristocracia canina

Quando foi publicado, em 1933, "Flush: Memórias de um Cão", de Virginia Woolf, logo se tornou o maior sucesso de público e de crítica da autora de "Mrs. Dalloway". Verdadeiro best-seller, a história contada do ponto de vista do cão da poeta inglesa Elizabeth Browning ganha, pela LP&M, sua primeira versão nacional. Leia a seguir um trecho do romance.
 
O quarto da Senhorita Barrett -pois era isso que havia atrás da porta- era provavelmente escuro, de acordo com todos os relatos. A luz, normalmente impedida de entrar por uma cortina de tecido verde adamascado, no verão ficava ainda mais fraca por conta da hera, dos feijões-escarlates, dos convólvulos e dos nastúrcios que cresciam na floreira da janela.
De início, Flush não conseguia distinguir nada naquele quarto esverdeado, a não ser cinco globos brancos que brilhavam e pairavam no ar de maneira misteriosa. Porém, mais uma vez, foi o cheiro do quarto que o arrebatou. Apenas um estudioso que tenha descido, pé ante pé, até o fundo de um mausoléu, encontrando uma cripta incrustada de mofo, escorregadia de limo, exalando cheiros acres de apodrecimento e de antiguidade, enquanto bustos semidestruídos de mármore pairavam no ar, e que só era capaz de enxergar o seu redor com a ajuda da luz fraca que vinha da pequena lamparina que carregava na mão, direcionando-a para cima e para baixo, de um lado para o outro, olhando ora aqui, ora ali -só as sensações de um explorador que houvesse penetrado nas câmaras funerárias de uma cidade em ruínas poderiam ser comparadas à confusão de emoções que invadiram os nervos de Flush quando ele entrou pela primeira vez no quarto de uma pessoa inválida, em Wimpole Street, e sentiu o cheiro de "eau-de-Cologne".
Muito lentamente, muito vagamente, depois de muito fuçar e sentir o terreno cautelosamente, Flush começou a distinguir o delineamento de diversos itens de mobília. Talvez aquele enorme objeto ao lado da janela fosse um guarda-roupa. Ao lado dele, parecia, havia uma cômoda. No meio do quarto, emergia à superfície uma mesa que parecia ter um anel à sua volta; e então afloraram as estruturas amorfas de uma poltrona e de outra mesa. Mas tudo estava disfarçado.
Em cima do guarda-roupa, havia três bustos brancos, a cômoda trazia prateleiras de livros em seu tampo: as prateleiras eram forradas de merino carmim; sobre o lavatório, havia uma torre de estantes; sobre as estantes que ficavam sobre o lavatório, havia mais dois bustos. Nada no quarto era o que era; tudo era algo mais. Nem a persiana era uma simples persiana de musselina; era um tecido pintado com um desenho de castelos, de caminhos e de bosques de árvores, além de diversos camponeses passeando (1).
Espelhos distorciam ainda mais esses objetos por si já distorcidos, de maneira que parecia haver dez bustos de dez poetas em vez de cinco; quatro mesas em vez de duas. E, de repente, uma confusão ainda mais aterradora instalou-se. De repente, Flush avistou outro cão, com olhos brilhantes que cintilavam e a língua pendurada para fora da boca, encarando-o de um buraco na parede! Parou, assombrado. Depois seguiu seu caminho, apavorado.
Às vezes avançando, às vezes recuando, Flush não ouvia quase nada, a não ser o farfalhar distante do vento passando através das copas das árvores, o murmúrio e tagarelar de vozes conversando. Deu continuidade à sua investigação, cuidadosamente, como um explorador avançando florestas adentro com passos cautelosos, sem saber direito se a sombra adiante é um leão ou se a raiz mais à frente é uma serpente.
Finalmente, no entanto, teve consciência dos enormes objetos que se confundiam sobre ele e, nervoso como estava devido aos acontecimentos da última hora, escondeu-se, tremendo, atrás de um biombo. As vozes cessaram. Uma porta fechou-se. Por um instante, ele parou desnorteado, nervoso.
Então, com a brutalidade do ataque de um tigre com as garras para fora, uma lembrança veio à sua mente. Sentiu-se sozinho -abandonado. Correu até a porta. Estava fechada. Arranhou-a com a pata, esperou. Ouviu passos que desciam. Sabia que eram os passos conhecidos de sua dona. Pararam. Não -logo recomeçaram e seguiram escada abaixo.
A Senhorita Mitford descia as escadas lentamente, com relutância, com pesar. E, à medida que avançava, à medida que o som ia ficando mais fraco, o pânico abateu-se sobre ele. Era uma porta sendo fechada depois da outra em sua cara à medida que a Senhorita Mitford descia as escadas; fechavam-se para os campos, para a liberdade, para as lebres; para a grama; para a sua adorada e venerada dona -aquela senhora tão querida que o banhara, que o repreendera com tapas, que o alimentara com a comida de seu próprio prato, apesar de ela mesma não ter muito o que comer-, para tudo que ele conhecia como alegria, amor e bondade humana! Pronto! A porta da frente fechou-se em um estrondo. Ela o abandonara.
Então, uma enorme onda de desespero e de angústia abateu-se sobre ele, a irrevogabilidade e a implacabilidade do destino atingiram-no com tanta força que ele ergueu a cabeça e uivou alto. Uma voz disse "Flush". Ele não ouviu. "Flush", repetiu uma segunda vez. Ele se assustou. Achou que estava sozinho. Virou-se. Será que havia mais alguma coisa viva além dele no quarto? Será que havia algo no sofá? Com a insana esperança de que esse ser, seja lá o que fosse, pudesse abrir a porta, de modo que ele fosse capaz de sair correndo atrás da Senhorita Mitford e alcançá-la -que essa fosse alguma brincadeira de esconde-esconde, como as que eles costumavam fazer na estufa, em casa-, Flush disparou para o sofá.
"Ah, Flush", disse a Senhorita Barrett. Pela primeira vez, ela o olhou nos olhos. Pela primeira vez, Flush viu a dama deitada no sofá.
Os dois se surpreenderam. Cachos pesados pendiam das laterais do rosto da Senhorita Barrett; grandes olhos espertos brilhavam; uma grande boca sorria. Orelhas pesadas pendiam das laterais do rosto de Flush; seus olhos também eram grandes e inteligentes; sua boca estava aberta. Havia algo de comum entre os dois. Enquanto encaravam um ao outro, pensavam: aqui estou eu.
Então, sentiam: mas como é diferente! O rosto dela era pálido, de uma inválida, afastado do ar, da luz, da liberdade. O dele era o rosto saudável e afetuoso de um animal jovem; cheio de saúde e de energia. Separados violentamente, apesar de originados no mesmo molde, será que um completava o que estava dormente no outro? Ela realmente poderia ser tudo aquilo, mas ele... não. Entre os dois existia o maior abismo que pode separar um ser do outro. Ela falava. Ele era mudo. Ela era uma mulher; ele era um cão. Assim, intimamente ligados; assim, imensamente separados, um encarava o outro. Então, de um salto, Flush subiu no sofá e se acomodou no lugar em que permaneceria para todo o sempre -na manta aos pés da Senhorita Barrett.


(1) A Senhorita Barrett diz: "Mandei que colocassem uma persiana transparente na minha janela aberta". E continua: "Papai insulta-me comparando-a com a janela dos fundos de uma doçaria, mas, não obstante, certamente fica comovido quando raios de sol iluminam o castelo". Algumas fontes sustentam que o castelo etc. eram pintados sobre uma substância metálica bem fina; outras, que era uma persiana de musselina ricamente bordada. Parece não haver maneira de chegar a um consenso a respeito desse assunto. (Nota da autora)



A obra

"Flush: Memórias de um Cão"
Autora: Virginia Woolf
Tradução: Ana Ban
Editora: L&PM
Quanto: preço ainda não definido



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