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INÉDITOS
Brasil recebe o maior sucesso comercial da escritora Virginia Woolf, "Flush: Memórias de um Cão"
Aristocracia canina
Quando foi publicado, em 1933,
"Flush: Memórias de um Cão", de
Virginia Woolf, logo se tornou o
maior sucesso de público e de crítica da autora de "Mrs. Dalloway". Verdadeiro best-seller, a
história contada do ponto de vista
do cão da poeta inglesa Elizabeth
Browning ganha, pela LP&M, sua
primeira versão nacional. Leia a
seguir um trecho do romance.
O quarto da Senhorita Barrett
-pois era isso que havia atrás da
porta- era provavelmente escuro, de acordo com todos os relatos. A luz, normalmente impedida de entrar por uma cortina de
tecido verde adamascado, no verão ficava ainda mais fraca por
conta da hera, dos feijões-escarlates, dos convólvulos e dos nastúrcios que cresciam na floreira da
janela.
De início, Flush não conseguia
distinguir nada naquele quarto
esverdeado, a não ser cinco globos brancos que brilhavam e pairavam no ar de maneira misteriosa. Porém, mais uma vez, foi o
cheiro do quarto que o arrebatou.
Apenas um estudioso que tenha
descido, pé ante pé, até o fundo de
um mausoléu, encontrando uma
cripta incrustada de mofo, escorregadia de limo, exalando cheiros
acres de apodrecimento e de antiguidade, enquanto bustos semidestruídos de mármore pairavam
no ar, e que só era capaz de enxergar o seu redor com a ajuda da luz
fraca que vinha da pequena lamparina que carregava na mão, direcionando-a para cima e para
baixo, de um lado para o outro,
olhando ora aqui, ora ali -só as
sensações de um explorador que
houvesse penetrado nas câmaras
funerárias de uma cidade em ruínas poderiam ser comparadas à
confusão de emoções que invadiram os nervos de Flush quando
ele entrou pela primeira vez no
quarto de uma pessoa inválida,
em Wimpole Street, e sentiu o
cheiro de "eau-de-Cologne".
Muito lentamente, muito vagamente, depois de muito fuçar e
sentir o terreno cautelosamente,
Flush começou a distinguir o delineamento de diversos itens de
mobília. Talvez aquele enorme
objeto ao lado da janela fosse um
guarda-roupa. Ao lado dele, parecia, havia uma cômoda. No meio
do quarto, emergia à superfície
uma mesa que parecia ter um anel
à sua volta; e então afloraram as
estruturas amorfas de uma poltrona e de outra mesa. Mas tudo
estava disfarçado.
Em cima do guarda-roupa, havia três bustos brancos, a cômoda
trazia prateleiras de livros em seu
tampo: as prateleiras eram forradas de merino carmim; sobre o lavatório, havia uma torre de estantes; sobre as estantes que ficavam
sobre o lavatório, havia mais dois
bustos. Nada no quarto era o que
era; tudo era algo mais. Nem a
persiana era uma simples persiana de musselina; era um tecido
pintado com um desenho de castelos, de caminhos e de bosques
de árvores, além de diversos camponeses passeando (1).
Espelhos distorciam ainda mais
esses objetos por si já distorcidos,
de maneira que parecia haver dez
bustos de dez poetas em vez de
cinco; quatro mesas em vez de
duas. E, de repente, uma confusão
ainda mais aterradora instalou-se. De repente, Flush avistou outro cão, com olhos brilhantes que
cintilavam e a língua pendurada
para fora da boca, encarando-o de
um buraco na parede! Parou, assombrado. Depois seguiu seu caminho, apavorado.
Às vezes avançando, às vezes recuando, Flush não ouvia quase
nada, a não ser o farfalhar distante
do vento passando através das copas das árvores, o murmúrio e tagarelar de vozes conversando.
Deu continuidade à sua investigação, cuidadosamente, como um
explorador avançando florestas
adentro com passos cautelosos,
sem saber direito se a sombra
adiante é um leão ou se a raiz mais
à frente é uma serpente.
Finalmente, no entanto, teve
consciência dos enormes objetos
que se confundiam sobre ele e,
nervoso como estava devido aos
acontecimentos da última hora,
escondeu-se, tremendo, atrás de
um biombo. As vozes cessaram.
Uma porta fechou-se. Por um instante, ele parou desnorteado, nervoso.
Então, com a brutalidade do
ataque de um tigre com as garras
para fora, uma lembrança veio à
sua mente. Sentiu-se sozinho
-abandonado. Correu até a porta. Estava fechada. Arranhou-a
com a pata, esperou. Ouviu passos que desciam. Sabia que eram
os passos conhecidos de sua dona. Pararam. Não -logo recomeçaram e seguiram escada abaixo.
A Senhorita Mitford descia as
escadas lentamente, com relutância, com pesar. E, à medida que
avançava, à medida que o som ia
ficando mais fraco, o pânico abateu-se sobre ele. Era uma porta
sendo fechada depois da outra em
sua cara à medida que a Senhorita
Mitford descia as escadas; fechavam-se para os campos, para a liberdade, para as lebres; para a
grama; para a sua adorada e venerada dona -aquela senhora tão
querida que o banhara, que o repreendera com tapas, que o alimentara com a comida de seu
próprio prato, apesar de ela mesma não ter muito o que comer-,
para tudo que ele conhecia como
alegria, amor e bondade humana!
Pronto! A porta da frente fechou-se em um estrondo. Ela o abandonara.
Então, uma enorme onda de desespero e de angústia abateu-se
sobre ele, a irrevogabilidade e a
implacabilidade do destino atingiram-no com tanta força que ele
ergueu a cabeça e uivou alto. Uma
voz disse "Flush". Ele não ouviu.
"Flush", repetiu uma segunda
vez. Ele se assustou. Achou que
estava sozinho. Virou-se. Será que
havia mais alguma coisa viva
além dele no quarto? Será que havia algo no sofá? Com a insana esperança de que esse ser, seja lá o
que fosse, pudesse abrir a porta,
de modo que ele fosse capaz de
sair correndo atrás da Senhorita
Mitford e alcançá-la -que essa
fosse alguma brincadeira de esconde-esconde, como as que eles
costumavam fazer na estufa, em
casa-, Flush disparou para o sofá.
"Ah, Flush", disse a Senhorita
Barrett. Pela primeira vez, ela o
olhou nos olhos. Pela primeira
vez, Flush viu a dama deitada no
sofá.
Os dois se surpreenderam. Cachos pesados pendiam das laterais do rosto da Senhorita Barrett;
grandes olhos espertos brilhavam; uma grande boca sorria.
Orelhas pesadas pendiam das laterais do rosto de Flush; seus
olhos também eram grandes e inteligentes; sua boca estava aberta.
Havia algo de comum entre os
dois. Enquanto encaravam um ao
outro, pensavam: aqui estou eu.
Então, sentiam: mas como é diferente! O rosto dela era pálido, de
uma inválida, afastado do ar, da
luz, da liberdade. O dele era o rosto saudável e afetuoso de um animal jovem; cheio de saúde e de
energia. Separados violentamente, apesar de originados no mesmo molde, será que um completava o que estava dormente no
outro? Ela realmente poderia ser
tudo aquilo, mas ele... não. Entre
os dois existia o maior abismo que
pode separar um ser do outro. Ela
falava. Ele era mudo. Ela era uma
mulher; ele era um cão. Assim, intimamente ligados; assim, imensamente separados, um encarava
o outro. Então, de um salto, Flush
subiu no sofá e se acomodou no
lugar em que permaneceria para
todo o sempre -na manta aos
pés da Senhorita Barrett.
(1) A Senhorita Barrett diz: "Mandei que
colocassem uma persiana transparente
na minha janela aberta". E continua: "Papai insulta-me comparando-a com a janela dos fundos de uma doçaria, mas,
não obstante, certamente fica comovido
quando raios de sol iluminam o castelo".
Algumas fontes sustentam que o castelo
etc. eram pintados sobre uma substância
metálica bem fina; outras, que era uma
persiana de musselina ricamente bordada. Parece não haver maneira de chegar
a um consenso a respeito desse assunto.
(Nota da autora)
A obra
"Flush: Memórias de um Cão"
Autora: Virginia Woolf
Tradução: Ana Ban
Editora: L&PM
Quanto: preço ainda não
definido
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