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DRAUZIO VARELLA
O encantamento
A canoa veio com os dois
meninos de pele bronzeada
e peito de remador, cabelo preto
cortado redondo, quase dois indiozinhos. A embarcação era um
tronco escavado, pintado de verde, afundado até meio palmo da
borda, deslizando entre os reflexos do sol que batia sem piedade
nas águas paradas do rio Negro, e
os dois em silêncio absoluto: o da
frente, no remo, em movimentos
alternados à esquerda e à direita
da canoa; o de trás, com os olhos
no nada, naquela imensidão.
Seis anos, o da frente, talvez
quatro, o outro, passaram por nós
com a atenção voltada para o Escola da Natureza, o barco de pesquisa da Unip. Ao lado do barco
em forma de gaiola amazônica, a
canoa parecia ainda mais frágil,
uma casca de nós semi-imersa.
Depois voltaram a cabeça em minha direção, curiosos, sem disfarçar a luminosidade ingênua do
olhar.
Perguntei para onde iam. Para
a casa, disse o mais velho, apontando a casinha de madeira coberta de palha, erguida sobre estacas num promontório à margem esquerda, emoldurada pelas
folhas delicadas de uma fileira de
açaís.
O rio estava baixo. Gravada nas
árvores, a marca úmida da última cheia a cinco ou seis metros de
altura. Quanto terá que chover
para o rio voltar ao nível anterior? Na beira, uma dessas praias
de areia tão fina que canta ao pisar penetrava as águas escuras, e,
no barranco, árvores de troncos
grossos se equilibravam com sabedoria sobre o emaranhado de
raízes aéreas. Paus contorcidos
em formas bizarras conferiam à
praia um ar de instalação de
Franz Kracjberg, em museu de
arte. Por trás de tudo, a floresta
onipresente.
Rebocamos os meninos até a casa deles. Descansado do remo, o
da frente apoiava cada mão numa das laterais da pequena embarcação, em postura simétrica à
do irmãozinho. Quando o Escola
da Natureza se aproximou do
promontório, o pai apareceu à soleira da porta.
Subi com os meninos o plano
inclinado que conduzia à casinha
sobre as estacas. O pai disse que se
chamava Afonso e me convidou
para entrar. Deixei o chinelo na
escada e sentei num banquinho
na sala. Conversamos sobre o nível das águas, a roça de mandioca, a fartura de peixes nessa época, e sobre a mãe dos meninos que
havia viajado três dias rio acima
para ajudar a irmã a ter o sexto
bebê. Depois chegamos até a janela dos fundos para ver o tamanho
da paca que o irmão havia caçado.
Um rapaz de trinta anos com
camiseta de propaganda de político, de boné, retirava com o facão
afiado as vísceras da caça numa
tábua grande, ao lado de uma bacia de água. Tinha o mesmo peito
de remador e os traços de índio
dos meninos. Quando me viu na
janela, parou o trabalho, colocou
a faca de lado e se afastou em silêncio na direção da roça.
É meu irmão Afonso, disse o pai
dos meninos, e me contou a história dele.
Um dia, Afonso remava solitário rio abaixo, numa dessas calmarias em que o espelho d'água
do rio cria duas realidades invertidas, virtuais, uma reflexo da outra. Vinha com o pensamento no
tucunaré que havia perdido na
noite anterior, sozinho, no igarapé, com a lamparina para encontrar e a zagaia para espetar o peixe. Como pode errar de tão perto?
Afonso acompanhou a curva
que o rio fazia para a direita, absorto, com o remo em movimentos ritmados, e desceu paralelo à
margem de uma praia que se estendia a perder de vista. Então,
na luminosidade alaranjada do
sol poente, ele vislumbrou ao longe um vulto de mulher andando
pela praia, no sentido oposto ao
dele. Aos poucos notou que ela vinha de vestido branco, esvoaçante, os ombros de fora, descalça,
com o cabelo liso acompanhando
o movimento do vestido. Quando
conseguiu discernir com nitidez o
rosto da moça, Afonso ficou encantado, nunca tinha visto semelhante beleza.
Ela passou altaneira, sem lhe
dirigir o olhar. Ele fez a canoa
voltar e seguiu rio acima, junto à
beira, ao lado dela. Acompanhou-a sem dizer uma palavra
por mais de duzentos metros, até
que ela parou e se voltou para ele.
Encarou-o por um tempo longo
com os olhos negros, misteriosa,
depois virou o corpo para o lado
da floresta e pegou uma trilha, à
esquerda.
O coração do rapaz explodiu de
emoção. Amarrou a canoa na
margem e correu pela trilha atrás
do vestido branco, entre as árvores e os cipós. O caminho o levou a
outra praia, na curva do rio. Ele,
a poucos metros do vulto dela.
Quando a praia se descortinou,
subitamente, ela desapareceu de
vista.
Aflito, correu a praia toda atrás
dela e não a encontrou! Afonso
sentiu que ia chorar de tristeza.
Com o coração apertado, parou
na margem e repetiu uma oração
índia que a mãe lhe ensinara para os momentos de melancolia.
Nesse instante, as águas se moveram diante dele, e delas emergiu
a cabeça de um boto cor de rosa.
O boto olhou fundo nos olhos de
Afonso e depois sorriu.
Então, continuou o pai dos meninos:
- Meu irmão ficou encantado.
Perdeu o juízo, até hoje.
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