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São Paulo, sábado, 03 de maio de 2003

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DRAUZIO VARELLA

O encantamento

A canoa veio com os dois meninos de pele bronzeada e peito de remador, cabelo preto cortado redondo, quase dois indiozinhos. A embarcação era um tronco escavado, pintado de verde, afundado até meio palmo da borda, deslizando entre os reflexos do sol que batia sem piedade nas águas paradas do rio Negro, e os dois em silêncio absoluto: o da frente, no remo, em movimentos alternados à esquerda e à direita da canoa; o de trás, com os olhos no nada, naquela imensidão.
Seis anos, o da frente, talvez quatro, o outro, passaram por nós com a atenção voltada para o Escola da Natureza, o barco de pesquisa da Unip. Ao lado do barco em forma de gaiola amazônica, a canoa parecia ainda mais frágil, uma casca de nós semi-imersa. Depois voltaram a cabeça em minha direção, curiosos, sem disfarçar a luminosidade ingênua do olhar.
Perguntei para onde iam. Para a casa, disse o mais velho, apontando a casinha de madeira coberta de palha, erguida sobre estacas num promontório à margem esquerda, emoldurada pelas folhas delicadas de uma fileira de açaís.
O rio estava baixo. Gravada nas árvores, a marca úmida da última cheia a cinco ou seis metros de altura. Quanto terá que chover para o rio voltar ao nível anterior? Na beira, uma dessas praias de areia tão fina que canta ao pisar penetrava as águas escuras, e, no barranco, árvores de troncos grossos se equilibravam com sabedoria sobre o emaranhado de raízes aéreas. Paus contorcidos em formas bizarras conferiam à praia um ar de instalação de Franz Kracjberg, em museu de arte. Por trás de tudo, a floresta onipresente.
Rebocamos os meninos até a casa deles. Descansado do remo, o da frente apoiava cada mão numa das laterais da pequena embarcação, em postura simétrica à do irmãozinho. Quando o Escola da Natureza se aproximou do promontório, o pai apareceu à soleira da porta.
Subi com os meninos o plano inclinado que conduzia à casinha sobre as estacas. O pai disse que se chamava Afonso e me convidou para entrar. Deixei o chinelo na escada e sentei num banquinho na sala. Conversamos sobre o nível das águas, a roça de mandioca, a fartura de peixes nessa época, e sobre a mãe dos meninos que havia viajado três dias rio acima para ajudar a irmã a ter o sexto bebê. Depois chegamos até a janela dos fundos para ver o tamanho da paca que o irmão havia caçado.
Um rapaz de trinta anos com camiseta de propaganda de político, de boné, retirava com o facão afiado as vísceras da caça numa tábua grande, ao lado de uma bacia de água. Tinha o mesmo peito de remador e os traços de índio dos meninos. Quando me viu na janela, parou o trabalho, colocou a faca de lado e se afastou em silêncio na direção da roça.
É meu irmão Afonso, disse o pai dos meninos, e me contou a história dele.
Um dia, Afonso remava solitário rio abaixo, numa dessas calmarias em que o espelho d'água do rio cria duas realidades invertidas, virtuais, uma reflexo da outra. Vinha com o pensamento no tucunaré que havia perdido na noite anterior, sozinho, no igarapé, com a lamparina para encontrar e a zagaia para espetar o peixe. Como pode errar de tão perto?
Afonso acompanhou a curva que o rio fazia para a direita, absorto, com o remo em movimentos ritmados, e desceu paralelo à margem de uma praia que se estendia a perder de vista. Então, na luminosidade alaranjada do sol poente, ele vislumbrou ao longe um vulto de mulher andando pela praia, no sentido oposto ao dele. Aos poucos notou que ela vinha de vestido branco, esvoaçante, os ombros de fora, descalça, com o cabelo liso acompanhando o movimento do vestido. Quando conseguiu discernir com nitidez o rosto da moça, Afonso ficou encantado, nunca tinha visto semelhante beleza.
Ela passou altaneira, sem lhe dirigir o olhar. Ele fez a canoa voltar e seguiu rio acima, junto à beira, ao lado dela. Acompanhou-a sem dizer uma palavra por mais de duzentos metros, até que ela parou e se voltou para ele. Encarou-o por um tempo longo com os olhos negros, misteriosa, depois virou o corpo para o lado da floresta e pegou uma trilha, à esquerda.
O coração do rapaz explodiu de emoção. Amarrou a canoa na margem e correu pela trilha atrás do vestido branco, entre as árvores e os cipós. O caminho o levou a outra praia, na curva do rio. Ele, a poucos metros do vulto dela. Quando a praia se descortinou, subitamente, ela desapareceu de vista.
Aflito, correu a praia toda atrás dela e não a encontrou! Afonso sentiu que ia chorar de tristeza. Com o coração apertado, parou na margem e repetiu uma oração índia que a mãe lhe ensinara para os momentos de melancolia. Nesse instante, as águas se moveram diante dele, e delas emergiu a cabeça de um boto cor de rosa. O boto olhou fundo nos olhos de Afonso e depois sorriu.
Então, continuou o pai dos meninos:
- Meu irmão ficou encantado. Perdeu o juízo, até hoje.



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