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RESENHA DA SEMANA
Êxtase da hipocrisia
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Philip Roth escreve por
indignação. Contra a falta
de bom senso, contra a progressiva incapacidade de pensar por
conta própria, contra a pobreza
de espírito, a hipocrisia e a má-fé
dos discursos que reduzem a literatura à expressão de uma realidade, ao relato de uma experiência ou à representação de
um grupo social, racial ou sexual.
Não é por acaso que o seu último livro, "The Human Stain"
("A Marca Humana" ou "A Nódoa Humana", aquilo que faz os
homens serem o que são, humanos), tenha como pano de fundo
a comoção social provocada pelo caso Bill Clinton/Monica Lewinsky.
O protagonista do romance é
um velho professor de literatura
clássica, um ex-reitor judeu de
uma pequena universidade do
interior da Nova Inglaterra, que
sofre um processo difamatório
após perguntar, em sala de aula,
por dois nomes da lista de chamada que nunca deram as caras.
O professor, que nunca viu os
dois alunos na vida e não sabe
que são negros, pergunta se
aqueles dois nomes são apenas
"fantasmas" ("spooks", em inglês, que também quer dizer
"negro" numa acepção pejorativa bem menos usada) e em pouco tempo se vê acusado de racismo pela direção do departamento.
Tentando se defender, o professor apela inutilmente para o
bom senso. Acaba pedindo seu
desligamento da universidade.
Em meio à controvérsia, perde a
mulher, que morre de um derrame, e passa a viver, aos 71 anos,
um romance com uma faxineira
de 34 que, separada de um veterano traumatizado do Vietnã,
perdeu os dois filhos pequenos
num incêndio.
O absurdo chega ao cúmulo
quando o professor recebe uma
carta anônima, acusando-o de
se aproveitar da faxineira pobre
e indefesa, e reconhece a letra de
uma jovem professora de francês, a mesma diretora do departamento de literatura que o repreendeu por ensinar textos de
Eurípedes que algumas alunas
achavam "degradantes para as
mulheres", a mesma que o acusou de racismo contra os alunos
faltosos.
A grande ironia, e o maior drama da história, é que o velho
professor judeu guarda um segredo: graças à sua pele clara,
pôde esconder de todos, inclusive da mulher e dos filhos, a sua
origem, o fato de ser negro, de
ter nascido numa família de negros pobres de Nova Jersey.
Em seus últimos livros, intensamente romanescos, sobretudo "O Teatro de Sabbath" e
"Pastoral Americana", que podem ser lidos entre as lágrimas e
as gargalhadas, Roth insiste em
escrever sobre a tragédia americana para um público e um país
que insistem em ignorar o sentido trágico da arte e preferem
percebê-la apenas com a função
de entretenimento ou expressão
de grupos sociais, raciais ou sexuais.
No final do romance, o narrador (o escritor Nathan Zuckerman, alter ego de Roth) ouve da
irmã negra do protagonista, que
é professora aposentada de escolas de periferia: "No colégio de
East Orange, eles deixaram há
muito tempo de ler os clássicos.
Nunca ouviram falar de "Moby
Dick", o que dirá lê-lo. Jovens vinham me ver no ano em que me
aposentei, dizendo que, para o
Mês da História Negra, só leriam uma biografia de algum
negro escrita por um negro".
Recentemente, Roth declarou
à "The New Yorker": "A cada
ano, 70 leitores morrem e, no lugar, aparecem apenas dois. (...)
A literatura exige um hábito
mental que desapareceu. Demanda silêncio, alguma forma
de isolamento e uma constante
concentração diante de algo
enigmático. É difícil confrontar
um romance maduro, inteligente e adulto. (...) É por isso que dizem coisas estúpidas a respeito
da literatura, porque, a menos
que sejam bem preparadas, as
pessoas não fazem a menor
idéia do que fazer com ela. (...)
Todo o esforço da primeira metade do século 20, todo o esforço
intelectual e artístico foi de ver
por trás das coisas (...). Explorar
a consciência foi a grande missão da primeira metade do século, (...) expandir o sentido do
que é a consciência e do que há
por trás dela. Isso não interessa
mais. Estamos diante de um estreitamento da consciência".
Ainda assim, aos 67 anos,
Roth continua escrevendo e
provavelmente nunca foi tão
produtivo. Não lhe resta outra
opção além da raiva que o leva a
mostrar seu repúdio, sua diferença e seu dissenso por meio
dos próprios livros. Afastado da
mesquinhez da vida literária, ele
segue escrevendo seus romances como uma recusa a se resignar à obtusidade com que a literatura vai progressivamente
sendo recebida pela mídia e por
leitores cada vez menos preparados.
Desaprenderam a ler e a ver.
Diante dos verdadeiros problemas, não conseguem fazer as
perguntas mais simples. O foco
se perde no "êxtase da hipocrisia": "Ler os clássicos é muito difícil, logo a culpa é dos clássicos.
Hoje o estudante afirma sua incapacidade como se fosse um
privilégio. Se não consigo
aprender uma coisa, então o
problema é da coisa. (...) Não há
mais critérios, senhor Zuckerman, só opiniões", diz a irmã
negra do protagonista acusado
de racismo.
The Human Stain
Autor: Philip Roth
Editora: Houghton Mifflin
Quanto: US$ 26 (364 págs.)
Onde encomendar:
www.amazon.com, www.bn.com
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