São Paulo, sábado, 03 de junho de 2000


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RESENHA DA SEMANA
Êxtase da hipocrisia

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Philip Roth escreve por indignação. Contra a falta de bom senso, contra a progressiva incapacidade de pensar por conta própria, contra a pobreza de espírito, a hipocrisia e a má-fé dos discursos que reduzem a literatura à expressão de uma realidade, ao relato de uma experiência ou à representação de um grupo social, racial ou sexual.
Não é por acaso que o seu último livro, "The Human Stain" ("A Marca Humana" ou "A Nódoa Humana", aquilo que faz os homens serem o que são, humanos), tenha como pano de fundo a comoção social provocada pelo caso Bill Clinton/Monica Lewinsky.
O protagonista do romance é um velho professor de literatura clássica, um ex-reitor judeu de uma pequena universidade do interior da Nova Inglaterra, que sofre um processo difamatório após perguntar, em sala de aula, por dois nomes da lista de chamada que nunca deram as caras.
O professor, que nunca viu os dois alunos na vida e não sabe que são negros, pergunta se aqueles dois nomes são apenas "fantasmas" ("spooks", em inglês, que também quer dizer "negro" numa acepção pejorativa bem menos usada) e em pouco tempo se vê acusado de racismo pela direção do departamento.
Tentando se defender, o professor apela inutilmente para o bom senso. Acaba pedindo seu desligamento da universidade. Em meio à controvérsia, perde a mulher, que morre de um derrame, e passa a viver, aos 71 anos, um romance com uma faxineira de 34 que, separada de um veterano traumatizado do Vietnã, perdeu os dois filhos pequenos num incêndio.
O absurdo chega ao cúmulo quando o professor recebe uma carta anônima, acusando-o de se aproveitar da faxineira pobre e indefesa, e reconhece a letra de uma jovem professora de francês, a mesma diretora do departamento de literatura que o repreendeu por ensinar textos de Eurípedes que algumas alunas achavam "degradantes para as mulheres", a mesma que o acusou de racismo contra os alunos faltosos.
A grande ironia, e o maior drama da história, é que o velho professor judeu guarda um segredo: graças à sua pele clara, pôde esconder de todos, inclusive da mulher e dos filhos, a sua origem, o fato de ser negro, de ter nascido numa família de negros pobres de Nova Jersey.
Em seus últimos livros, intensamente romanescos, sobretudo "O Teatro de Sabbath" e "Pastoral Americana", que podem ser lidos entre as lágrimas e as gargalhadas, Roth insiste em escrever sobre a tragédia americana para um público e um país que insistem em ignorar o sentido trágico da arte e preferem percebê-la apenas com a função de entretenimento ou expressão de grupos sociais, raciais ou sexuais.
No final do romance, o narrador (o escritor Nathan Zuckerman, alter ego de Roth) ouve da irmã negra do protagonista, que é professora aposentada de escolas de periferia: "No colégio de East Orange, eles deixaram há muito tempo de ler os clássicos. Nunca ouviram falar de "Moby Dick", o que dirá lê-lo. Jovens vinham me ver no ano em que me aposentei, dizendo que, para o Mês da História Negra, só leriam uma biografia de algum negro escrita por um negro".
Recentemente, Roth declarou à "The New Yorker": "A cada ano, 70 leitores morrem e, no lugar, aparecem apenas dois. (...) A literatura exige um hábito mental que desapareceu. Demanda silêncio, alguma forma de isolamento e uma constante concentração diante de algo enigmático. É difícil confrontar um romance maduro, inteligente e adulto. (...) É por isso que dizem coisas estúpidas a respeito da literatura, porque, a menos que sejam bem preparadas, as pessoas não fazem a menor idéia do que fazer com ela. (...) Todo o esforço da primeira metade do século 20, todo o esforço intelectual e artístico foi de ver por trás das coisas (...). Explorar a consciência foi a grande missão da primeira metade do século, (...) expandir o sentido do que é a consciência e do que há por trás dela. Isso não interessa mais. Estamos diante de um estreitamento da consciência".
Ainda assim, aos 67 anos, Roth continua escrevendo e provavelmente nunca foi tão produtivo. Não lhe resta outra opção além da raiva que o leva a mostrar seu repúdio, sua diferença e seu dissenso por meio dos próprios livros. Afastado da mesquinhez da vida literária, ele segue escrevendo seus romances como uma recusa a se resignar à obtusidade com que a literatura vai progressivamente sendo recebida pela mídia e por leitores cada vez menos preparados.
Desaprenderam a ler e a ver. Diante dos verdadeiros problemas, não conseguem fazer as perguntas mais simples. O foco se perde no "êxtase da hipocrisia": "Ler os clássicos é muito difícil, logo a culpa é dos clássicos. Hoje o estudante afirma sua incapacidade como se fosse um privilégio. Se não consigo aprender uma coisa, então o problema é da coisa. (...) Não há mais critérios, senhor Zuckerman, só opiniões", diz a irmã negra do protagonista acusado de racismo.


The Human Stain      Autor: Philip Roth Editora: Houghton Mifflin Quanto: US$ 26 (364 págs.) Onde encomendar: www.amazon.com, www.bn.com



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