São Paulo, Quinta-feira, 03 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CONTARDO CALLIGARIS
Defesa (febril) da televisão

Uma leve gripe me forçou a ficar de cama. Aproveitei para assistir a 18 horas seguidas de televisão - limitando meu zapping aos canais públicos americanos (nada de cultural ou de CNN).
Queria verificar a quanta violência se expõe um espectador passando seu dia na frente da TV.
A idéia surgiu porque a TV está sob suspeita. Mais do que cinema, Internet e videogames, ela é sempre culpada pelo que não dá certo com nossos jovens. TV-Free America (www.tvfa.org) propõe estatísticas que constituem um silogismo acusatório.
Primeiro prova-se que, na vida de um jovem, a televisão é mais presente do que a escola e os pais. Em média, o jovem americano vê 1.500 horas de TV por ano. E passa apenas 900 na escola. A criança entre 2 e 11 anos assiste a três horas por dia de TV. E conversa de maneira significativa com os pais por apenas de cinco a seis minutos. Conclusão: a TV é quem mais influencia nossos rebentos.
Logo, pergunta-se: como a TV usa tamanho poder? De fato, a resposta varia segundo o horror do momento. Se estivermos escandalizados pelo comportamento sexual das jovens gerações, a TV é uma escola de luxúria. Como ultimamente alguns jovens americanos tomaram as armas sem razão aparente, a TV, repetem hoje comentadores e experts, é uma escola de violência.
Eis os números aparentemente impressionantes. Aos 18 anos, um jovem americano terá assistido na TV a 16 mil assassinatos (mais ou menos 3 por dia) e a 200 mil atos de violência (números que, proporcionalmente, não devem ser muito diferentes para o Brasil).
No fim de minha maratona, as estatísticas pareciam confirmadas. Cinco pessoas foram assassinadas em minha presença e 28 levaram tapas, pontapés, socos e mesmo surras. Parece muita violência? Não sei. Em muitos casos (entre eles os 5 mortos) a violência era de uma certa forma justa, alvejava algum bem evidente.
Mas, sobretudo, descobri que, durante as 18 horas, sete casais tinham se juntado para viver felizes. Outros nove resistiram a uma briga feia. Também 27 pessoas se apaixonaram, o número ímpar sugerindo que nem todas foram correspondidas. Nasceram duas crianças, uma não desejada - mas que encontrou os cuidados de uma comunidade generosa. Nove pessoas adoeceram, sete foram curadas ou confortadas, duas morreram em paz com Deus e o mundo. Aliás, uma aproveitou a ocasião para fazer as pazes com ambos.
Interessado pela variedade dos acontecimentos, comecei a marcar também atos e eventos que eram apresentados sem intensidade dramática, mas que tomavam importância como contraponto à suposta apologia da violência: assim, 14 filhos e filhas respeitaram seus pais, estudaram e fizeram seu dever de casa. Dezenas de pessoas foram gentis, atenciosas e dedicadas com seu próximo.
Globalmente, os criminosos, os malandros, os chatos, os corruptos e os interesseiros foram esmagados pelos bons cidadãos, trabalhadores e sinceros. Também a liberdade soberana dos indivíduos foi respeitada, mas não por isso falhou a generosidade comunitária.
Na ausência (definitiva e provavelmente bem-vinda) de prescrições morais dogmáticas, a telinha contemplada por 18 horas me pareceu ser um código moral possível para nosso tempo. Ele não é composto de regras, mas de uma casuística de parábolas, cuja autoridade deriva do consenso implícito dos espectadores -pois a moral que triunfa na tela é a que encontra a aprovação da maioria.
Os próprios anúncios publicitários fazem parte de nossas regras sociais de conduta. Eles alimentam o desejo indispensável numa economia neoliberal. Mas, acima de tudo, permitem a convivência pacífica em um mundo que, sem isso, seria entregue a ódios incontroláveis - por ser fundamentalmente regrado pela inveja. O anúncio cria e promove ideais comuns. Em vez de odiar meu vizinho por ele ter o carro que eu quero, juntos idealizamos o homem impossível, bonito e forte, que dirige o tal carro na TV. Esse homem não é nem ele, nem eu.
A mediação do piloto televisivo inibe a inveja e a transforma em emulação - o suficiente para que o tecido social não quebre.
Em suma, nas 18 horas, longe de estimular a barbárie, a televisão me ofereceu uma amostra dos costumes sociais e da moral social ordinária, uma espécie de revisão dos requisitos para a vida em sociedade neste fim de século.
Por volta de uma da madrugada, ela acabou induzindo meu sono. Parece que a cada noite ela acalenta milhões. Deve ser pela confiança que nos inspira sua mediocridade. Graças a ela, podemos dormir tranquilos, pois, apesar de nossa solidão individualista, algo de coletivo persiste. Histórias, crenças, opiniões não formalizadas, irredutíveis a um corpus. Talvez só suscetíveis, justamente, de se desdobrarem como o constante pano de fundo da TV: nosso patrimônio verdadeiramente comum.

E-mail ccalligari@uol.com.br


Texto Anterior: Prêmio/Literatura: Gunter Grass vence Príncipe de Astúrias
Próximo Texto: Cinema - Estréia: Passadismo é a marca de "Tempestade de Gelo"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.