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CONTARDO CALLIGARIS
Defesa (febril) da televisão
Uma leve gripe me forçou a ficar de cama. Aproveitei para
assistir a 18 horas seguidas de
televisão - limitando meu
zapping aos canais públicos
americanos (nada de cultural
ou de CNN).
Queria verificar a quanta
violência se expõe um espectador passando seu dia na frente
da TV.
A idéia surgiu porque a TV
está sob suspeita. Mais do que
cinema, Internet e videogames,
ela é sempre culpada pelo que
não dá certo com nossos jovens.
TV-Free America (www.tvfa.org) propõe estatísticas que
constituem um silogismo acusatório.
Primeiro prova-se que, na vida de um jovem, a televisão é
mais presente do que a escola e
os pais. Em média, o jovem
americano vê 1.500 horas de
TV por ano. E passa apenas 900
na escola. A criança entre 2 e 11
anos assiste a três horas por dia
de TV. E conversa de maneira
significativa com os pais por
apenas de cinco a seis minutos.
Conclusão: a TV é quem mais
influencia nossos rebentos.
Logo, pergunta-se: como a TV
usa tamanho poder? De fato, a
resposta varia segundo o horror do momento. Se estivermos
escandalizados pelo comportamento sexual das jovens gerações, a TV é uma escola de luxúria. Como ultimamente alguns jovens americanos tomaram as armas sem razão aparente, a TV, repetem hoje comentadores e experts, é uma
escola de violência.
Eis os números aparentemente impressionantes. Aos 18
anos, um jovem americano terá assistido na TV a 16 mil assassinatos (mais ou menos 3
por dia) e a 200 mil atos de violência (números que, proporcionalmente, não devem ser
muito diferentes para o Brasil).
No fim de minha maratona,
as estatísticas pareciam confirmadas. Cinco pessoas foram
assassinadas em minha presença e 28 levaram tapas, pontapés, socos e mesmo surras. Parece muita violência? Não sei.
Em muitos casos (entre eles os 5
mortos) a violência era de uma
certa forma justa, alvejava algum bem evidente.
Mas, sobretudo, descobri que,
durante as 18 horas, sete casais
tinham se juntado para viver
felizes. Outros nove resistiram
a uma briga feia. Também 27
pessoas se apaixonaram, o número ímpar sugerindo que nem
todas foram correspondidas.
Nasceram duas crianças, uma
não desejada - mas que encontrou os cuidados de uma comunidade generosa. Nove pessoas adoeceram, sete foram curadas ou confortadas, duas
morreram em paz com Deus e o
mundo. Aliás, uma aproveitou
a ocasião para fazer as pazes
com ambos.
Interessado pela variedade
dos acontecimentos, comecei a
marcar também atos e eventos
que eram apresentados sem intensidade dramática, mas que
tomavam importância como
contraponto à suposta apologia da violência: assim, 14 filhos e filhas respeitaram seus
pais, estudaram e fizeram seu
dever de casa. Dezenas de pessoas foram gentis, atenciosas e
dedicadas com seu próximo.
Globalmente, os criminosos,
os malandros, os chatos, os corruptos e os interesseiros foram
esmagados pelos bons cidadãos, trabalhadores e sinceros.
Também a liberdade soberana
dos indivíduos foi respeitada,
mas não por isso falhou a generosidade comunitária.
Na ausência (definitiva e provavelmente bem-vinda) de
prescrições morais dogmáticas,
a telinha contemplada por 18
horas me pareceu ser um código moral possível para nosso
tempo. Ele não é composto de
regras, mas de uma casuística
de parábolas, cuja autoridade
deriva do consenso implícito
dos espectadores -pois a moral que triunfa na tela é a que
encontra a aprovação da maioria.
Os próprios anúncios publicitários fazem parte de nossas regras sociais de conduta. Eles
alimentam o desejo indispensável numa economia neoliberal. Mas, acima de tudo, permitem a convivência pacífica em
um mundo que, sem isso, seria
entregue a ódios incontroláveis
- por ser fundamentalmente
regrado pela inveja. O anúncio
cria e promove ideais comuns.
Em vez de odiar meu vizinho
por ele ter o carro que eu quero,
juntos idealizamos o homem
impossível, bonito e forte, que
dirige o tal carro na TV. Esse
homem não é nem ele, nem eu.
A mediação do piloto televisivo inibe a inveja e a transforma
em emulação - o suficiente
para que o tecido social não
quebre.
Em suma, nas 18 horas, longe
de estimular a barbárie, a televisão me ofereceu uma amostra dos costumes sociais e da
moral social ordinária, uma espécie de revisão dos requisitos
para a vida em sociedade neste
fim de século.
Por volta de uma da madrugada, ela acabou induzindo
meu sono. Parece que a cada
noite ela acalenta milhões. Deve ser pela confiança que nos
inspira sua mediocridade. Graças a ela, podemos dormir
tranquilos, pois, apesar de nossa solidão individualista, algo
de coletivo persiste. Histórias,
crenças, opiniões não formalizadas, irredutíveis a um corpus. Talvez só suscetíveis, justamente, de se desdobrarem como o constante pano de fundo
da TV: nosso patrimônio verdadeiramente comum.
E-mail ccalligari@uol.com.br
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