São Paulo, Quinta-feira, 03 de Junho de 1999
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CINEMA - ESTRÉIA
Passadismo é a marca de "Tempestade de Gelo"

Divulgação
Sigourney Weaver e Kevin Kline traem seus cônjuges em cena de "Tempestade de Gelo", do diretor Ang Lee, baseado em livro de Rick Moody


da Redação

Se existe uma tendência temática a notar entre os filmes lançados recentemente, esta é a desintegração da família, tema que habita o dinamarquês "Festa de Família", o francês "Sitcom", os americanos "Felicidade" e, agora, "Tempestade de Gelo". Com exceção do primeiro, que tem uma entrada temática original e uma postulação estética própria, os demais parecem diluir em diversos graus o "Teorema", de Pasolini. O último deles a entrar em cartaz, "Tempestade de Gelo", é também o mais olvidável.
Talvez isso se deva ao fato de Ang Lee ser um cineasta que ainda se adapta ao Ocidente. Em 1973, ano em que decorre a ação narrada no romance "The Ice Storm", de Rick Moody, Lee morava em Taipé, Taiwan. De maneira que as alusões seja à mudança de hábitos sexuais, seja à queda do presidente Nixon, são colhidas de segunda mão.
Contra isso pode-se argumentar que Ang Lee veio para os EUA em 1978, de maneira que isso não serviria de desculpa. O fato é que seu primeiro filme a projetá-lo internacionalmente, "O Banquete de Casamento", não por acaso fazia a ponte entre a China e os EUA, tinha um pé em cada país.
Aqui, estamos na plenitude da América, mais especificamente em Nova Canaã, onde Ben Hood (Kevin Kline) vive com sua insatisfeita (e inquieta com sua insatisfação) mulher, Elena (Joan Allen).
Ben é outro que está insatisfeito, tanto que, na primeira oportunidade, transporta-se para o leito de sua amiga Janey (Sigourney Weaver), ela própria mulher de seu melhor amigo. Também os filhos adolescentes dos casais envolvem-se.
Uma coisa é certa: esse grupo de personagens cercados pela neve de um inverno rigoroso tem pouca ou nenhuma chance de chegar a alguma espécie de felicidade, de plenitude. Isso de algum modo coloca o filme acima do cabotinismo dramático de "Felicidade", por exemplo, mas, ao mesmo tempo, coloca-o numa espécie de terreno baldio dos sentimentos.
Ali estão pessoas frustradas, inconformadas com suas frustrações, mas que não sabem a que aspiram nem por que aspiram. De maneira que o espectador pode se formular, ao final de tudo, essa clássica pergunta que já é uma resposta à inconsequência de certas obras de arte: e daí?
Daí que Ang Lee justifica seu filme dizendo que 1973 é o ano em que os EUA perdem a virgindade e passam da adolescência à maturidade. Ou ainda que "Tempestade de Gelo" reflete o impacto que teve sobre ele, em priscas eras, "A Primeira Noite de um Homem".
Tudo muito bem. Mas "A Primeira Noite" já trata dessa passagem da maturidade. E o mínimo a dizer é que "Tempestade de Gelo" parece um filme saído do final dos anos 60, com pouco a dizer aos 90.
Uma sequência (a da festa) ilustra bem esse espírito: trocam-se os parceiros sexuais, mas às cegas, aleatoriamente. Nenhum desejo é definido, como se esses senhores e senhoras de meia-idade saíssem correndo atrás do bonde da liberdade sexual, mas sem saber direito por que correm, o que desejam.
É possível até que isso tenha acontecido num momento de rearranjo da moral sexual, o que tornará o filme fascinante para antropólogos. Os demais espectadores tendem a ficar um pouco pasmos, observando o espetáculo de uma sexualidade que desabrocha meio morta, gélida como a tempestade do título. (INÁCIO ARAUJO)


Avaliação:


Filme: Tempestade de Gelo Produção: EUA, 1997 Direção: Ang Lee Com: Kevin Kline, Joan Allen, Sigourney Weaver e Christina Ricci Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 2


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