São Paulo, quarta-feira, 03 de julho de 2002

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MARCELO COELHO

Queijo, vinho e futebol

Conforme a idade, cada pessoa tem a "sua" Copa do Mundo, a que de fato faz parte de seu patrimônio afetivo, aquela que foi realmente vivida.
Até hoje me lembro de cada jogo e da escalação do time de 70. Quanto a esta seleção do Penta, confesso que no domingo, depois do jogo, eu ainda tinha de perguntar: "Quem é aquele ali?", ao que me respondiam: "É o Kleberson", ou: "É o Edmilson", não sei bem.
Imagino que este campeonato vá ficar na memória de um jeito especial -não só porque o Brasil ganhou, claro, mas pela circunstância rara de os jogos terem sido de madrugada, interrompendo a rotina nacional de uma forma intensa e física, mais do que aconteceu em qualquer outra Copa.
A torcida meio grogue de sono, os encontros com amigos logo no café da manhã, a ida ao trabalho ou à escola depois de uma noite maldormida ou passada em claro -há nisso uma série de elementos "fixadores de memória", até mesmo pelo desconforto envolvido.
Lembro-me, por exemplo, de um pequeno desconforto que havia nas transmissões dos jogos em 1970, que as reprises na TV não registram: o sol no México era fortíssimo, e sobre as laterais do campo se projetava, conforme a hora, a sombra da arquibancada. Para quem estava vendo o jogo na TV em preto-e-branco, o gramado se dividia, assim, numa área clara e em outra de quase escuridão, na qual os jogadores mergulhavam por minutos.
Demorava até que os técnicos ajustassem a imagem. O pior é que, quando ajustavam, os jogadores já tinham ido para a área onde batia o sol, desaparecendo novamente, então num excesso de luz.
Aquele vaivém entre obscuridade e ofuscamento de certo modo ilustra o que eu queria dizer no começo -isto é, que só se ganha a Copa do Mundo uma vez na vida e que a memória não ilumina por igual todos os fatos, mesmo os notáveis, mesmo os "memoráveis", por que passamos.
Lembro também que fazia frio em 1970, um frio mais vivo do que faz agora, e que estava na moda (parecia uma descoberta genial) a coisa dos jantares de queijo e vinho. Outra descoberta da época eram os nomes de lojas e restaurantes com o final "e Cia.", do tipo "Cama, Mesa e Cia."
Junte-se a isso a avenida Paulista, que acabava de ser alargada, e o Center Três, esboço de shopping center na esquina com a rua Augusta, e tem-se o "mundo moderno" de então. Tratava-se de uma modernidade no consumo, já bem próxima da "modernidade atual", se podemos dizer assim, e certamente diversa, embora dependente, da brasilidade eufórica e transamazônica do regime militar.
Quando eu vejo na televisão os anúncios que falam dos oito anos do governo Fernando Henrique e o peso das forças continuístas nesta eleição -mais quatro? mais oito? mais doze? quanto eles querem?-, fico pensando se aquele passado está tão longe assim.
Não é que a democracia não tenha se fortalecido -e muito. Tenho medo, entretanto, da permanência de um mesmo esquema no poder. O que se encobre e o que se organiza nos subterrâneos do Estado vai adquirindo dimensões cada vez mais sérias.
Se começam a grampear todo mundo; se cada candidato rival, seja Lula, seja Roseana Sarney, passa a conhecer adversidades com a polícia; se há um marqueteiro fazendo gracinhas sobre o "país que tem rumo" graças ao governo; se a alternativa ao candidato oficial é o caos, a baderna econômica, o deus-nos-acuda e, se a marchinha -tão simpática, é verdade- dos muitos milhões em ação vibra no ar o tempo todo, sinto-me obrigado, pelo menos, a dizer que não me esqueci da Copa de 70.
Tenho também de falar sobre outra recordação daquela época. Em plena Copa do Mundo, fui com meu pai jantar no Center Três (o nome do restaurante, se o leitor já não adivinhou, era Queijo, Vinho e Cia.) e, ao lado, havia uma livraria. Com destaque, na vitrine, estava uma nova edição das profecias de Nostradamus.
Sem muita razão para isso, meu pai me deu o livro de presente. Era meio complicado para a minha idade e acabei desistindo de lê-lo. Deveria pelo menos ter aprendido ali alguma coisa sobre a inutilidade das previsões, mas não aprendi.
Fui dos que achavam que o Brasil não passava das oitavas-de-final. Bem, não fui o único a fazer prognósticos pessimistas. Paciência. O que talvez seja instrutivo pensar é o seguinte. Claro que o time de Pelé, Tostão (e Cia.) era de fato excepcional. Mas a competição entre aquele time e qualquer outro time atual será injusta por essência, dada uma diferença básica.
Todos os jogos, todos os erros, todos os acertos da seleção de 70 já se realizaram; aquele time está desculpado de qualquer defeito, pois venceu -e vence- na memória dos torcedores há 30 anos. Suas imperfeições, como as costeletas de Félix e as caneladas de Brito, deixaram de ser imperfeições e agora fazem parte de um destino, de uma substância vitoriosa e irrevogável.
Este time do Penta, até domingo, não sabíamos se iria ganhar ou não. Está ainda mal cicatrizado dos sustos, dos riscos, das incertezas por que passamos; natural, então, que seja "pior" do que o time de 70 ou que tenha inspirado muito menos confiança e milhares de profecias erradas.
O time ganhou, dizem, mas "não convenceu". Não convenceu porque sua vitória é recente demais, não é ainda contrapeso suficiente para todos os medos que nos provocou.
Tempo de descansar. Eu, pelo menos, tiro férias; volto em agosto.



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