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MARCELO COELHO
Queijo, vinho e futebol
Conforme a idade, cada
pessoa tem a "sua" Copa do
Mundo, a que de fato faz parte de
seu patrimônio afetivo, aquela
que foi realmente vivida.
Até hoje me lembro de cada jogo e da escalação do time de 70.
Quanto a esta seleção do Penta,
confesso que no domingo, depois
do jogo, eu ainda tinha de perguntar: "Quem é aquele ali?", ao
que me respondiam: "É o Kleberson", ou: "É o Edmilson", não sei
bem.
Imagino que este campeonato
vá ficar na memória de um jeito
especial -não só porque o Brasil
ganhou, claro, mas pela circunstância rara de os jogos terem sido
de madrugada, interrompendo a
rotina nacional de uma forma intensa e física, mais do que aconteceu em qualquer outra Copa.
A torcida meio grogue de sono,
os encontros com amigos logo no
café da manhã, a ida ao trabalho
ou à escola depois de uma noite
maldormida ou passada em claro
-há nisso uma série de elementos "fixadores de memória", até
mesmo pelo desconforto envolvido.
Lembro-me, por exemplo, de
um pequeno desconforto que havia nas transmissões dos jogos em
1970, que as reprises na TV não
registram: o sol no México era fortíssimo, e sobre as laterais do
campo se projetava, conforme a
hora, a sombra da arquibancada.
Para quem estava vendo o jogo
na TV em preto-e-branco, o gramado se dividia, assim, numa
área clara e em outra de quase escuridão, na qual os jogadores
mergulhavam por minutos.
Demorava até que os técnicos
ajustassem a imagem. O pior é
que, quando ajustavam, os jogadores já tinham ido para a área
onde batia o sol, desaparecendo
novamente, então num excesso
de luz.
Aquele vaivém entre obscuridade e ofuscamento de certo modo
ilustra o que eu queria dizer no
começo -isto é, que só se ganha a
Copa do Mundo uma vez na vida
e que a memória não ilumina por
igual todos os fatos, mesmo os notáveis, mesmo os "memoráveis",
por que passamos.
Lembro também que fazia frio
em 1970, um frio mais vivo do que
faz agora, e que estava na moda
(parecia uma descoberta genial)
a coisa dos jantares de queijo e vinho. Outra descoberta da época
eram os nomes de lojas e restaurantes com o final "e Cia.", do tipo "Cama, Mesa e Cia."
Junte-se a isso a avenida Paulista, que acabava de ser alargada, e
o Center Três, esboço de shopping
center na esquina com a rua Augusta, e tem-se o "mundo moderno" de então. Tratava-se de uma
modernidade no consumo, já
bem próxima da "modernidade
atual", se podemos dizer assim, e
certamente diversa, embora dependente, da brasilidade eufórica
e transamazônica do regime militar.
Quando eu vejo na televisão os
anúncios que falam dos oito anos
do governo Fernando Henrique e
o peso das forças continuístas nesta eleição -mais quatro? mais
oito? mais doze? quanto eles querem?-, fico pensando se aquele
passado está tão longe assim.
Não é que a democracia não tenha se fortalecido -e muito. Tenho medo, entretanto, da permanência de um mesmo esquema no
poder. O que se encobre e o que se
organiza nos subterrâneos do Estado vai adquirindo dimensões
cada vez mais sérias.
Se começam a grampear todo
mundo; se cada candidato rival,
seja Lula, seja Roseana Sarney,
passa a conhecer adversidades
com a polícia; se há um marqueteiro fazendo gracinhas sobre o
"país que tem rumo" graças ao
governo; se a alternativa ao candidato oficial é o caos, a baderna
econômica, o deus-nos-acuda e,
se a marchinha -tão simpática,
é verdade- dos muitos milhões
em ação vibra no ar o tempo todo,
sinto-me obrigado, pelo menos, a
dizer que não me esqueci da Copa
de 70.
Tenho também de falar sobre
outra recordação daquela época.
Em plena Copa do Mundo, fui
com meu pai jantar no Center
Três (o nome do restaurante, se o
leitor já não adivinhou, era Queijo, Vinho e Cia.) e, ao lado, havia
uma livraria. Com destaque, na
vitrine, estava uma nova edição
das profecias de Nostradamus.
Sem muita razão para isso, meu
pai me deu o livro de presente.
Era meio complicado para a minha idade e acabei desistindo de
lê-lo. Deveria pelo menos ter
aprendido ali alguma coisa sobre
a inutilidade das previsões, mas
não aprendi.
Fui dos que achavam que o Brasil não passava das oitavas-de-final. Bem, não fui o único a fazer
prognósticos pessimistas. Paciência. O que talvez seja instrutivo
pensar é o seguinte. Claro que o
time de Pelé, Tostão (e Cia.) era
de fato excepcional. Mas a competição entre aquele time e qualquer outro time atual será injusta
por essência, dada uma diferença
básica.
Todos os jogos, todos os erros,
todos os acertos da seleção de 70
já se realizaram; aquele time está
desculpado de qualquer defeito,
pois venceu -e vence- na memória dos torcedores há 30 anos.
Suas imperfeições, como as costeletas de Félix e as caneladas de
Brito, deixaram de ser imperfeições e agora fazem parte de um
destino, de uma substância vitoriosa e irrevogável.
Este time do Penta, até domingo, não sabíamos se iria ganhar
ou não. Está ainda mal cicatrizado dos sustos, dos riscos, das incertezas por que passamos; natural, então, que seja "pior" do que
o time de 70 ou que tenha inspirado muito menos confiança e milhares de profecias erradas.
O time ganhou, dizem, mas
"não convenceu". Não convenceu
porque sua vitória é recente demais, não é ainda contrapeso suficiente para todos os medos que
nos provocou.
Tempo de descansar. Eu, pelo
menos, tiro férias; volto em agosto.
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